A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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9 de janeiro de 2018

O indulto, a prisão e o “ghoul” de Scalia


O fantasma da superlotação é usado para mascarar o colapso da segurança pública e o fiasco dos índices de elucidação de delitos graves sob o mantra de que se “prende muito” no Brasil

O Decreto 9.246/2017 – o do indulto coletivo natalino – teve seus efeitos parcialmente suspensos por decisão liminar da presidência do STF, apreciando medida cautelar em ação proposta pela Procuradoria-Geral da República. A decisão, entre outros fundamentos, baseia-se “no aparente desvio de finalidade do ato” e na “relativização da jurisdição penal”. Comentando o teor do edito em artigo no site Consultor Jurídico, o criminalista Cézar Roberto Bitencourt afirmou que o indulto é o único meio político legítimo para reduzir a superpopulação carcerária, diante da “excessiva e insuportável multidão que lotam (sic) as nossas penitenciárias, buscando, em outros termos, minimizar o rigor do drama prisional, destinando-se somente aos presos que não praticaram crimes mediante violência ou grave ameaça”.

A simples leitura do decreto é suficiente para verificar que ele contempla, sim, crimes praticados com grave ameaça ou violência à pessoa (como demonstram os incisos II e III do artigo 1.º), excetuando algumas hipóteses. Descontado esse lapso, a posição do articulista será tomada como ponto de partida em nossa análise: se a finalidade do indulto é reduzir a população carcerária, por que, como bem observado pelo professor Vladimir Aras em seu blog, o decreto chegou “ao cúmulo de indultar condenados que estejam em regime aberto, que estejam cumprindo penas alternativas, que estejam em sursis ou em livramento condicional”? Por que o indulto alcança também “a pena de multa aplicada cumulativamente pelo crime (corrupção, por exemplo), ainda que haja inadimplência?”. O que isso tem a ver com a questão da superlotação dos presídios?

Limito-me, por ora, à exposição de alguns dados fundamentais, a fim de que o leitor tire suas próprias conclusões. 1. segundo informação obtida em 30 de dezembro no Conselho Nacional de Justiça, a população carcerária brasileira é de 659.807 pessoas, havendo um déficit de 255.293 vagas. 2. em 2017, o Fundo Penitenciário Nacional recebeu R$ 357.328.508,87, dos quais empregou apenas R$ 149.385.004,74, de acordo com o Portal da Transparência. 3. no ano de 2013, o CNJ já sugeria a responsabilização das autoridades de 11 estados, que deixaram de investir R$ 103,4 milhões destinados aos presídios. 4. ainda segundo o CNJ, em abril de 2016 o Funpen contava com nada menos que R$ 2,5 bilhões disponíveis para investimento.

Como dizia Nelson Rodrigues, “subdesenvolvimento não se improvisa; é obra de séculos”. Não é difícil concluir que o sucateamento do sistema prisional brasileiro é fruto de criminosa negligência das autoridades, mas o leitor poderá objetar que a reforma, ampliação e construção de novas penitenciárias não seriam um meio legítimo de redução da densidade populacional carcerária, pois o verdadeiro problema é que o “Brasil prende muito”. Vejamos: 1. o Brasil registra cerca de 60 mil homicídios dolosos por ano, ou seja, um brasileiro é morto a cada nove minutos. 2.entre o ano 2000 e a presente data, mais de 800 mil brasileiros foram mortos, com um porcentual de elucidação que gira entre constrangedores 5% e 8%, segundo o Diagnóstico da Investigação de Homicídios da Enasp. 3. no brevíssimo período de pouco mais de 15 anos, já deduzido o recorde de 19% de elucidação obtido nos 43.123 inquéritos finalizados pelo programa Meta 2, é possível estimar que mais de 700 mil homicídios cometidos no Brasil nem sequer tiveram a autoria apurada. 4. de acordo com o Foro de Segurança Pública, apenas no ano de 2016 foram praticados mais de três assaltos por minuto no Brasil, totalizando 1.726.757 roubos registrados (contra 985.983 registros no ano de 2011). 5. estima-se que apenas um em cada 53 roubos registrados tem a autoria esclarecida no estado do Rio de Janeiro. 6. temos mais de 130 estupros registrados por dia no país, o que totaliza cerca de 50 mil por ano. 7. em junho de 2017 o Banco Nacional de Mandados de Prisão registrava um total de 703.550 mandados pendentes de cumprimento.

A esta altura o leitor já deve ter percebido que a única solução racional para o déficit de vagas prisionais é – que surpresa! – a criação de mais vagas. Deve ter percebido, igualmente, que existem recursos para tanto e que a meta é factível (não consta que a construção de presídios exija mais tecnologia que a de estádios). Por que, então, isso não é feito? Tomando emprestada uma comparação do saudoso magistrado Antonin Scalia, uma das mais proeminentes figuras da Suprema Corte dos Estados Unidos, em Lamb’s Chapel v. Center Moriches Union Free School District: a “superlotação carcerária” é uma espécie de “ghoul” (carniçal) de filme de terror, que reaparece sobre a sepultura após ser, repetidas vezes, morto e enterrado.

O “ghoul” da superlotação é com frequência desenterrado e usado para mascarar o colapso da segurança pública e o fiasco dos índices de elucidação de delitos graves (inferiores a 10%), sob o mantra de que se “prende muito” no Brasil. Ou, ainda, para sustentar a ideologia laxista da falência da pena de prisão, dando suporte àquela que parece ser a única política governamental consistente nessa matéria: o fomento à impunidade, que faz do Brasil o país mais violento do mundo. Não é surpresa que seja empregado para justificar a concessão de benefícios a criminosos do colarinho branco, casta corrupta e parasitária que drena os recursos do país!

Dizia o famigerado Saul Alinsky: “A questão nunca é a questão. A questão é sempre o poder”. Para que solucionar um problema quando se pode tirar proveito dele?
Por Diego Pessi, Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul.

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