A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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12 de julho de 2013

A vestimenta do réu no Júri

 
Réu Policial Militar pode comparecer fardado a seu julgamento no plenário do Tribunal do Júri?
 
Tem sido comum réu policial militar, no plenário do Tribunal do Júri, usar vestimentas próprias de sua instituição, como se estivesse em serviço, ou da maneira como, rotineiramente, se apresenta a solenidades castrenses. Até que ponto esta forma de vestir pode influenciar o ânimo dos jurados e trazer prejuízo ao órgão acusatório, favorecendo a sua absolvição ou o acolhimento de outra tese defensiva?  Há amparo legal para este tipo de conduta?
 
A igualdade das partes que deve permear todo o processo penal, ao qual o júri está inserido, é uma decorrência do princípio da isonomia, estampado no artigo 5 º da Constituição Federal. Deve haver equilíbrio apto a não beneficiar nenhum dos integrantes da lide, caso contrário este princípio basilar da relação processual estaria seriamente comprometido, podendo causar diversas nulidades.
 
É certo que no processo penal, diferentemente do que acontece no processo civil, há uma mitigação deste princípio, dando origem ao que se logrou denominar favor rei, que autoriza a defesa a ter acesso a determinados instrumentos aos quais o órgão acusatório não tem, como, por exemplo, a revisão criminal.
 
Contudo, esta situação atenuada da absoluta paridade de armas é bastante restrita e não se pode em nome dela consolidar situações não previstas em lei, que colocam em xeque a regra basilar do Tribunal do Júri, segundo a qual as partes devem ter tratamento igualitário.
 
Quando um policial militar comparece ao seu julgamento fardado pode levar à falsa crença de que se encontra ali a serviço, ou pior, de que é a sua instituição que está em julgamento, e não a sua pessoa. Esta despersonalização do julgamento é muito prejudicial à acusação. Imaginemos que um PM está sendo julgado por ter matado um perigoso meliante, sem que fique evidenciado que o tenha feito acobertado por alguma excludente da ilicitude. A vítima foi atingida por mais de uma dezena de tiros, alguns deles pelas costas. A contraposição réu/vítima, a ser explorada pela defesa, ganha corpo com a vestimenta do réu.
 
Vale lembrar que antes mesmo de o julgamento iniciar, quando já formado o Conselho de Sentença, os jurados se defrontarão com um réu fardado ao lado de outros policiais, encarregados da segurança ou da escolta, que estarão com as vestimentas semelhantes às suas. Isso pode causar certa confusão. A primeira impressão dos jurados, juntada a outros elementos trazidos pela defesa, trará uma situação de desequilíbrio, que poderá levar a uma absolvição injusta ou ao acatamento de tese defensiva despropositada, passível, obviamente, de recurso. Contudo, se um segundo julgamento confirmar o primeiro, aquela situação de absoluta desigualdade será consolidada.
 
O jurado é sensível a todos os elementos que compõem o julgamento e não somente às provas que lhe são apresentadas. É lógico que a decisão deve se pautar por elas e se delas estiver dissociada poderá ser anulada; contudo, se houver a apresentação de diferentes teses pela defesa e acusação, ambas factíveis e os jurados optarem por uma das versões, favorecendo o acusado, é possível que a escolha tenha sido fruto também da vestimenta do réu e da influência que ela pode exercer. Como diz o dito popular: a primeira impressão é a que fica.  Da mesma forma que o uso inadequado de algemas pode influenciar o jurado levando-o a crer que o réu é pessoa perigosa e por conta disso deve ser condenado, o uso de uniforme em plenário pode dar a impressão de que o acusado representa a sua instituição, cuja finalidade é a garantir preventivamente a segurança pública, o bem da sociedade e, por consequência, do próprio jurado.
 
Existe uma linguagem verbal e outra não-verbal, ambas utilizadas pelas partes como força retórica perante os julgamentos do Tribunal do Júri, e a farda do réu, ao criar imagem de seriedade, traz um desequilíbrio neste discurso.  A visão que se tem do réu, garboso em seu uniforme, é um instrumento que reforça a linguagem não-verbal transmitida aos jurados, fazendo-os crer que se trata de um cidadão honesto e trabalhador, que agiu para defender a sociedade.
 
A exposição acima, decorrente do princípio da igualdade de armas, encontra consonância com uma norma interna da Polícia Militar do Estado de São Paulo, consubstanciada no Boletim Geral PM 153, de 9 de agosto de 2.000, emitida pelo Quartel do Comando Geral, que, ao tratar do uso de uniformes e trajes civis, em seu item 13- a, reza que: “quando na condição de réu em processo de crime comum, (deve se apresentar) em trajes civis, social, condizentes com aquele exigido pelo Poder Judiciário”.
 
O próprio comando castrense, através dessa norma, reconhece que o réu pertencente a sua instituição deverá se apresentar com trajes civis, condizentes com a dignidade do Poder Judiciário, quando se tratar de processo da Justiça comum, ao contrário do que acontece quando o julgamento é na Justiça militar, onde deverá se apresentar fardado.  A ratio normativa é bastante óbvia: em crimes propriamente militares ou de outra natureza, previstos pela legislação penal castrense, o acusado é julgado pelos seus pares, que não se deixam influenciar pela sua vestimenta, no entanto, quando se tratar da Justiça comum, sobretudo, no Tribunal do Júri, deverá se apresentar em trajes civis.
 
Na própria exposição de motivos da norma elencada acima, há menção de que a disciplina de utilização de trajes visa “a preservação da imagem da Corporação”. De se concluir, que não interessa ao comando da Polícia Militar que um dos seus membros seja julgado utilizando o seu uniforme, pois a imagem da corporação poderá ficar maculada, com eventual confusão entre o agente e a instituição da qual faz parte.
 
Pode-se argumentar que a norma administrativa, de caráter interno, não tem o condão de se fazer valer externamente, em julgamentos pela Justiça comum, principalmente no Tribunal do Júri, contudo, este é mais um elemento que reforça a tese de que o uso de uniforme por réus traz um desequilíbrio na situação das partes.
 
Os operadores do direito que atuam perante o Tribunal do Júri deverão ficar atentos aos aspectos acima abordados, visando-se preservar a igualdade das partes, a imagem da Polícia Militar e o impedimento da ocorrência de possíveis nulidades.
 
Por André Luiz Bogado Cunha, Promotor de Justiça do 2o Tribunal do Júri de São Paulo.
 

Um comentário:

Anônimo disse...

Discordo frontalmente. Primeiro porque o policial é policial durante as 24 horas de seu dia, não perdendo essa sua condição no momento em que está sendo julgado.

Tanto isso é verdade que, mesmo em seu instante de folga, se presenciar um crime, deverá agir, sob pena de ser responsabilizado administrativa, civil e penalmente.

Em segundo lugar, a CF, ao tratar do Tribunal do Júri, mais do que a ampla defesa, assegura ao réu a plenitude da defesa, não a plenitude da acusação.

Daí já se pode inferir o princípio do "favor rei", por meio do qual se busca outorgar ao réu vantagens não fruíveis pela acusação, justamente para se equilibrar uma relação que já nasce marcada pela desigualdade.

É dizer: há o réu e seu patrono, sozinhos de um lado, contra todo o poderio estatal representado pela Polícia e Ministério Público, de outro.

Primar pela igualdade absoluta entre as partes, nesse caso, desatende por completo ao princípio da isonomia, que desde sua formulação aristotélica consiste em tratar desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades.

É por isso que o ordenamento, visando à igualdade material, outorga somente ao réu: a plenitude da defesa, o direito de não ser algemado injustificadamente, de oferecer resposta preliminar e alegações finais ainda que fora do prazo, de se manter em silêncio, de ter todas as suas teses defensivas quesitadas, ainda que aparentemente absurdas, de ser absolvido em caso de dúvida, de fazer uso de recursos que só cabem a ele, como os embargos infringentes, de cumprir prisão-pena somente após o trânsito em julgado da sua condenação etc.

Dessarte, se o réu está usando a sua vestimenta como um mecanismo de angariar simpatias à sua defesa, tal conduta encontra-se plenamente albergada pelo princípio da plenitude da defesa (que, como dito, está acima do da ampla defesa, que vige em todos os demais processos, penais ou não).

Portanto, cercear tal mecanismo de defesa constitui nulidade insanável do julgamento, devendo o réu ser submetido a um novo se porventura for condenado.

Cabe, pois, ao Ministério Público, durante a sua sustentação oral no plenário do Júri, argumentativamente, desfazer as falsas impressões que o uso farda poderá causar no Conselho de Sentença. Aliás, a depender dos integrantes deste, a farda poderá é precipitar a condenação.

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