A sentença é um exemplo frisante da estupidez humana, visto que, além de aplicar a pena capital, tem como crime uma ficção, isto é, um crime sem vítima. De fato, o que hoje conhecemos por tráfico ilícito de entorpecentes nem sempre existiu, afinal houve um tempo em que as drogas (antigas e atuais) eram livremente produzidas e comercializadas. A história da repressão – um grande fracasso – é recente, portanto. É provável que num futuro não muito distante as atuais substâncias ilegais voltem a ser produzidas e comercializadas com algum controle oficial, à semelhança do que se passa com as drogas lícitas (álcool etc.).
E mais, proibir não é controlar, mas remeter a atividade proibida para a clandestinidade, onde não existe controle (oficial) algum, de modo que, a pretexto de reprimir a produção e o comércio de droga, a lei penal acaba por fomentar o próprio tráfico e novas formas de violência e criminalidade, razão pela qual alguns países têm preferido uma política de redução de danos a uma política repressiva.
É que, a pretexto de combater a produção e o consumo de droga, a proibição incondicional dessa forma de comércio tem produzido efeitos desastrosos: 1) criação de preços artificiais e atrativos, tornando-o extremamente rentável; 2) o surgimento de uma criminalidade organizada especializada; 3)frequentes confrontos e mortes entre grupos rivais; 4) frequentes confrontos e mortes entre traficantes e policiais; 4)vitimização de inocentes por meio das chamadas “balas perdidas”; 5) lavagem de capitais; 6) corrupção das polícias; 7) tráfico de armas; 8) sonegação de tributos; 9) rebeliões nos presídios; 10) ameaça, extorsão e morte de consumidores inadimplentes.
E, como sabemos, apesar da repressão, drogas são facilmente encontradas em todo território nacional. Parece mesmo que, quão mais repressora é a política antidroga, mais forte e violento se torna o tráfico, mesmo porque, enquanto houver procura, haverá oferta de droga, inevitavelmente.
Ademais, o tráfico é, em princípio, um crime sem vítima, pois as drogas não são em si mesmas prejudiciais à saúde, tudo dependendo de quem as usa, como e quando o faz. Afinal, são neutras, como o é um martelo ou uma faca de cozinha, que podem ser usados eventualmente (também) para ferir ou matar alguém. Daí a justa comparação de Thomas Szasz: “como un judío profanando la Torah, o un cristiano la hostia, un americano que usa droga ilícita es culpable del crimen místico de profanación: transgrede el más estricto y más remido tabú. Quien abusa de las drogas se contamina a sí mesmo y contamina a su comunidad, poniendo em peligro a ambos. De ahí que para el libertario laico quen abusa de las drogas comete un crimen sin víctima (esto es, ningún crimen em absoluto), mientras para el hombre normalmente socializado es un peligroso profanador de lo sagrado. Por eso su eliminación está ampliamente justificada.”
Finalmente, a criminalização indiscriminada acaba por inviabilizar a realização de um controle oficial mínimo sobre a qualidade da droga produzida e consumida, inclusive porque as autoridades sanitárias nada podem fazer a esse respeito, em razão da clandestinidade; segundo, porque os consumidores não têm, em geral, um mínimo de informação sobre os efeitos nocivos das substâncias psicoativas; terceiro, porque o sistema de saúde não está aparelhado para atender aos usuários e dependentes; quarto, porque o próprio usuário é ainda tratado como delinqüente, que deve ser castigado e não tratado.
Enfim, a questão fundamental não reside na produção e consumo de drogas legais ou ilegais, presentes na história da humanidade desde sempre, mas na irracionalidade do discurso de guerra às drogas e na violência arbitrária que resulta da atual política proibicionista, um autêntico genocídio em marcha.
E o mais trágico ou cômico de tudo isso é que, embora condenado pelo crime de tráfico de droga (ilegal), Marco Acher pediu, como último desejo, um litro de whisky Chivas (droga legal).
Por Paulo Queiroz, Procurador-Regional da República.
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