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7 de maio de 2012

Limites da soberania dos veredictos

Procurador-Regional da República
Doutor em Direito (PUCSP)

Com alguma frequência o tribunal do júri tem decidido pela absolvição de réus que alegam negativa de autoria, exclusivamente, apesar de responder, afirmativamente, às duas perguntas iniciais sobre a materialidade e a autoria delitiva, conclusivas de que foi o réu quem praticou o homicídio ou dele participou. Para alguns autores, essa decisão, embora contraditória, seria legítima em virtude da soberania dos veredictos, razão pela qual os jurados seriam livres para decidirem como quiserem, para além do ordenamento jurídico.

Não estamos de acordo com isso.

É que a assim chamada soberania dos veredictos (CF, art. 5°, XXXVIII1) não constitui um poder de decisão absolutamente incontrastável que permitisse ao tribunal do júri decidir com total liberdade e, pois, sem vínculo algum com o ordenamento jurídico vigente (constitucional e legal), dada a absoluta incompatibilidade de semelhante poder com os fundamentos e princípios que informam o Estado Democrático de Direito (CF, art. 1°).

Com efeito, o poder decisório que se traduz na soberania dos veredictos é, em verdade, um problema de competência cujo alcance é relativamente limitado, pois significa apenas que nenhum juiz ou tribunal, que não o próprio tribunal do júri, pode rever ou modificar suas decisões de mérito, condenatórias ou absolutórias.

Nesse exato sentido, escreve José Frederico Marques:

Se soberania do Júri, no entender da communis opinio doctorum, significa a impossibilidade de outro órgão judiciário substituir ao Júri na decisão de uma causa por ele proferida, soberania dos veredictos traduz, mutatis mutandis, a impossibilidade de uma decisão calcada em veredicto dos jurados ser substituída por uma sentença sem esta base.

Os veredictos são soberanos, porque só os veredictos é que dizem se é procedente ou não a pretensão punitiva.2

A soberania dos veredictos importa, essencialmente, portanto, numa restrição ao poder de revisão das decisões de mérito. Mas também esse poder não é absoluto, pois está sujeito a uma série de limitações que o relativizam grandemente, a exemplo do que ocorre com a revisão criminal (CPP, art. 621), admitida que é para absolver o réu ou atenuar a condenação decretada pelo júri, e com a admissão da apelação, nos casos previstos em lei, a favor e contra o réu. 

O tribunal do júri, por conseguinte, como instituição democrática que é, está forçosamente vinculado aos princípios e garantias inerentes ao Estado Constitucional de Direito, porque, do contrário, sua concepção não faria sentido algum nesse contexto. Justamente por isso, são-lhe inteiramente aplicáveis os princípios fundamentais que regem o direito e o processo penal democrático, a exemplo do princípio da legalidade, do devido processo legal, da imparcialidade, do duplo grau de jurisdição etc.

A única (possivelmente) exceção a isso é a dispensa de fundamentação das decisões dos jurados (CPP, art. 489), exceção, aliás, que tem levado alguns autores a propor a abolição pura e simples do tribunal júri, por incompatibilidade com as garantias do Estado de Direito.3

Além do mais, se as decisões do tribunal do júri não comportassem reforma, a pretexto de ofensa à soberania dos veredictos, violar-se-ia, entre outros, o princípio do duplo grau de jurisdição.4

Os limites da soberania dos veredictos são, em última análise, os limites do próprio Estado, portanto.

Em suma, o júri, ele próprio uma garantia constitucional, não é uma instituição fora ou além do Estado Constitucional de Direito, razão pela qual os jurados, como todo e qualquer juiz ou tribunal (togado ou não, leigo ou não), não podem decidir arbitrariamente, isto é, sem nenhum tipo de vínculo seja com a prova dos autos, seja com o ordenamento jurídico.

O júri não é, enfim, uma espécie de juízo ou tribunal de exceção.

Consequentemente, a decisão inicialmente referida incorre em manifesta contradição que a compromete substancialmente, visto que os jurados acabam por afirmar que o réu é e não é culpado de crime de homicídio.

Nesse sentido, convém referir os seguintes precedentes:

HABEAS CORPUS. PACIENTE DENUNCIADO POR HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO (ART. 121, § 2o., II E VI DO CPB). ABSOLVIÇÃO PELO CONSELHO DE SENTENÇA. REFORMA DA DECISÃO PELO TRIBUNAL A QUO, COM A DETERMINAÇÃO DE REALIZAÇÃO DE NOVO JULGAMENTO. PRECLUSÃO DA PRETENSÃO DEDUZIDA PELO PARQUET ESTADUAL. MATÉRIA NÃO APRECIADA. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. CONTRADIÇÃO NAS RESPOSTAS DOS QUESITOS FORMULADOS. RECONHECIMENTO DA MATERIALIDADE E DA AUTORIA, HAVENDO, CONTUDO, A ABSOLVIÇÃO DO PACIENTE, SENDO QUE A NEGATIVA DE AUTORIA FOI A ÚNICA TESE FORMULADA PELA DEFESA. ART. 490 DO CPP. NECESSÁRIA INTERVENÇÃO DO MAGISTRADO, TODAVIA NÃO VERIFICADA NA ESPÉCIE. PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM. ORDEM DENEGADA. 1. O tema relativo à preclusão da matéria deduzida pelo Parquet Estadual em sede de apelação - contradição entre quesitos, com a nulidade do julgamento - não foi submetido à apreciação do Tribunal a quo, consubstanciando sua análise, nesta Corte Superior, inadmissível supressão de instância. 2. Submetido a julgamento perante o Tribunal do Júri, restou o paciente absolvido, nada obstante o Conselho de Sentença ter reconhecido que as lesões descritas no laudo foram a causa da morte e ter o paciente agido de forma livre e consciente, com vontade de matar, quando desferiu os golpes com instrumento contundente (faca) contra a vítima. 3. In casu, a única tese defensiva foi a de negativa da autoria, conforme consignado na ata de julgamento. Assim sendo, conforme registrou o aresto combatido, a resposta positiva ao quesito relativo à absolvição do réu surge contraditória com o reconhecimento da autoria. 4. Parecer do MPF pela denegação da ordem. 5. Ordem denegada. (HC 201000029925, NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, STJ - QUINTA TURMA, DJE DATA:16/11/2010.)

HABEAS CORPUS. PACIENTE ABSOLVIDO DA IMPUTAÇÃO DE HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO. NEGATIVA DE AUTORIA RECONHECIDA PELO CONSELHO DE SENTENÇA. DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. DETERMINAÇÃO, PELO TRIBUNAL A QUO, DE REALIZAÇÃO DE NOVO JULGAMENTO. ACÓRDÃO DEVIDAMENTE FUNDAMENTADO. INOCORRÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA SOBERANIA DOS VEREDICTOS. PRECEDENTES DO STJ. PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DO WRIT. ORDEM DENEGADA. 1. Inexiste constrangimento ilegal ou violação da soberania do Júri Popular, em razão da anulação, pelo Tribunal de Justiça, da decisão absolutória do Conselho de Sentença, alicerçada unicamente na negativa de autoria sustentada pelo réu, se tal argumento não encontra respaldo nos elementos de prova coligidos, evidenciando-se manifestamente contrária ao conjunto fático-probatório apurado na instrução. 2. In casu, além dos depoimentos das testemunhas a respeito da declaração da vítima, que apontou o paciente como o autor dos disparos, que, posteriormente, acabaram levando-a à morte, verifica-se profunda contradição nos depoimentos de seus familiares sobre a hora em que o paciente teria saído de casa naquele dia. 3. Ademais, há outra circunstância peculiar que demonstra a contrariedade admitida pelo Tribunal de origem, qual seja, a resposta afirmativa dos Jurados ao quesito concernente ao cometimento, por parte da testemunha de defesa ANTONIO PAULO SANTANA, do crime de falso testemunho sobre fato juridicamente relevante e pertinente ao objeto do processo em que o paciente foi absolvido, qual seja, exatamente o álibi por ele apresentado. 4. Ordem denegada, em consonância com o parecer ministerial. (HC 200802486106, NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, STJ - QUINTA TURMA, DJE DATA: 22/03/2010.)

Notas:

1 O art. 5°, XXXVIII, da CF, dispõe: é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

2MARQUES, José Frederico. A instituição do júri. Campinas: Bookseller, 1997, p.80. No mesmo sentido, Hermínio Marques Porto. Júri. São Paulo: Saraiva, 2005. E Ângelo Ansanelli Júnior. Tribunal do Júri e A Soberania dos Veredictos. Rio: Lúmen Júris, 2005.

3Nesse sentido, Aury Lopes Júnior. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Rio: Lumen Juris, 2009.

4 Elmir DUCLERC, Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 604, escreve a propósito da apelação contra decisões do tribunal do júri:.”De um modo geral, esse tratamento legislativo diferenciado tem sido apontado como uma tentativa de equilibrar, infraconstitucionalmente, dois importantes princípios do Direito Processual Penal: o duplo grau de jurisdiçãoe a soberania dos veredictos. É que se por um lado o duplo grau impõe a possibilidade de revisão da sentença por juiz superior, a soberania dos veredictos, por outro, exige que o julgamento popular, nos crimes da competência do Júri, não possa ser modificado por juízes togados, ainda quando integrantes de uma instância superior. A solução encontrada pelo legislador, portanto, foi admitir o recurso somente nos casos de erro de direito (alíneas a, b e c, do inciso III) e nas hipóteses em que a decisão do Júri estiver totalmente divorciada das provas; e mesmo nessa última hipótese a apelação, uma vez deferida, não tem o condão de simplesmente reformara decisão, condenando quem foi absolvido ou absolvendo quem foi condenado; tudo o que pode fazer o Tribunal nesses casos é anular o julgamento e determinar que outro seja realizado; a decisão que resultar do segundo julgamento, contudo, seja ela qual for, não poderá mais ser impugnada sob esse fundamento, nos exatos termos do art. 593, §3º, do CPP.”.

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