Arrisco dizer que, entre todas as imensas possibilidades de preencher a ideia do “melhor do século” – O vermelho e o negro, de Stendhal, As ilusões perdidas, de Balzac, Anna Karenina, de Tolstói, por exemplo, puxando a brasa a alguns livros que eu amo – dois seriam certamente finalistas: Madame Bovary, de Flaubert, e Crime e Castigo, de Dostoiévski. Há quem incluiria nesta lista Memórias póstumas de Brás Cubas, do nosso Machado, e seria um candidato fortíssimo. Mas como sou eu que estou fazendo a pergunta e estabelecendo as regras ao meu arbítrio, acrescento que a condição de melhor deve incluir necessariamente a extensão de sua influência artística e intelectual, e neste tópico, esquecido no exílio brasileiro, Machado sai perdendo já na largada. É um critério arriscado que ponho na mesa; um purista diria que a qualidade é sempre um valor intrínseco, o que para mim seria uma redução a absurdo, porque nenhum valor é “intrínseco”, e nesse momento a discussão na mesa do bar iria esquentar, mais uma cerveja, alguém levantaria a voz, os argumentos chegariam aos gritos e a crônica acabaria sem chegar a nenhum lugar, exceto rancores entredentes, como se literatura fosse futebol. Mas voltemos ao ponto.
Coloco na raia Madame Bovary e Crime e Castigo porque ambos exerceram uma influência irresistível nos cem anos seguintes da literatura mundial, e continuam ressoando, em campos mais ou menos diferentes. O romance de Flaubert, de 1857, conta a história de um adultério: a provinciana Madame Bovary desgraça sua vida ao se apaixonar por um aventureiro e destruir seu casamento. Sem nenhum sentimentalismo, Flaubert vai corroendo os pressupostos morais e culturais da sociedade em que vivia, num livro considerado tecnicamente perfeito. Já em Crime e castigo, de 1866, Dostoiévski, às vezes levianamente acusado de escrever mal e não saber terminar seus livros, acompanha a agonia ética de Raskolnikov, que assassina uma velhinha avarenta para lhe roubar algumas moedas, com uma justificação revolucionária: que utilidade aquela velha agiota tinha para o mundo? Com Dostoiévski, entramos na modernidade da “moral utilitária”, que seria devastadora no século 20 e até hoje nos assombra.
Qual o melhor? O leitor decide.
Por Cristovão Tezza, escritor premiado.
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