A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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28 de setembro de 2011

Ô MORETTO, VOCÊ ME MATOU!”: A APLICAÇÃO CEGA DA LEI


Na tabuleta que encima a porta, está escrito: “É proibida a entrada de cães”.

Apresentam-se três pessoas, cada uma com seu animal de estimação: uma jovem senhora, um homem de meia idade e um deficiente visual.

Vem, primeiro, a jovem senhora. No braço, traz sua cadelinha poodle, branca e cheia de laços.

O porteiro, incontinenti, lhe barra a entrada. Ela se exaspera: “Mas, minha cadelinha é inofensiva. Ela não vai latir, nem fazer sujeira. Muito menos atacar quem quer que seja. O senhor não tem olhos?”.

O porteiro mostra a tabuleta e diz: “A lei é clara”.

Vem, depois, também com seu animalzinho, o homem de meia idade. Traz com ele um gato, “pretinho como a noite”.

Como fizera anteriormente, o porteiro o impede de entrar. O homem objeta: “Mas, a placa diz ‘cães’. Gato não é cão, logo …”. E tenta continuar argumentando.

O porteiro, secamente, o interrompe: “Cão é bicho, gato também. Se cão não entra, gato também não”.

Por fim, vem, o deficiente visual com seu cão-guia à mão.

Mais uma vez, o porteiro.

O deficiente visual diz: “Este não é um cão comum. Ele foi previamente treinado para me guiar. Comporta-se, pois, absolutamente bem e está acostumado ao convívio humano, mesmo em ambientes fechados. Na verdade, senhor, este cão são meus olhos”.

O porteiro, agora, emudece e, algum tempo, fica ruminando a dúvida.

Em seguida, fala da tabuleta. Que não foi ele que a fixou. Que, por ele, seria diferente. Mas, “Lei é lei, o senhor sabe”. E, também, não deixa que o deficiente visual entre, com seu cão.

Aqui, a hora de se perguntar: “Nos três casos, bem aplicou a lei o porteiro?”. Noutro dizer, “A aplicação da lei, posta na tabuleta, atendeu a seu mandamento interno?”.

Jean Grondin, referindo-se, desenganadamente, ao mandamento interno da lei, pontua no sentido de que: “Sólo podemos querer interpretar una expresión para comprender su sentido partiendo del supuesto de que quiere decir algo, que ella es la expresión de un discurso interior”1.

Qual, pois, o discurso interior da lei da tabuleta? O que, em verdade, quis dizer, quando disse o que disse? Como, então, interpretar sua expressão (“É proibida a entrada de cães”), para compreender seu sentido?

Desaconselhável – no intento de se responder às questões – o apego exacerbado ao teor literal da norma.

Com efeito, pode-se tomar por “discurso interior” da norma “É proibida a entrada de cães” a preceituação: “É vedado o convívio homem-animal em situações que cobrem certo padrão de comportamento, não alcançável por seres irracionais, mormente em ambientes fechados”.

Tomado o “discurso interior” da norma como tal, chega-se à conclusão de que o porteiro laborou com acerto nos dois primeiros casos – os da jovem senhora e do homem de meia idade – havendo, no entanto, incorrido em erro interpretativo, no caso do deficiente visual e seu cão-guia, já que, aqui, fez uma aplicação cega da lei em vigor.

Aplicação que, se tida por adequada, obrigaria também o porteiro a obstar a entrada do policial, com seu cão farejador, que viesse proceder a diligência de localização de drogas ilícitas, ou mesmo do bombeiro e seu cão salva-vidas, em socorro de alguém em perigo.

Situações excepcionais – sabe-se – cobram soluções especiais, as quais, apesar de desbordantes do teor literal da norma, atendem a seu “discurso interior”, ou seja, a sua razão de ser.

O cão-guia do deficiente visual não deve ser, para a lei da tabuleta, um animal comum, cuja presença entre humanos deva ser afastada, em face de grunhidos e sujeiras inerentes à sua irracionalidade.

Por regra, o cão-guia de um deficiente visual apresenta comportamento diverso dos cães comuns, já que, prévia e disciplinadamente, treinado para participar do convívio humano, não só aqui, mas também ali e acolá, sendo, pois, os verdadeiros olhos que guiam quem, por si só, não se pode guiar.

Traz-se à baila, agora, episódio acontecido em “O Deserto dos Tártaros”2, romance do escritor Italiano Dino Buzzati.

No capítulo XII da obra, Buzzati narra incidente havido entre militares do Forte Bastiani, que evidencia hipótese semelhante de aplicação cega da lei.

No episódio, envolvem-se Giuseppe Lazzari, “um rapazote havia pouco em serviço”, Tronk, o circunspecto sargento-mor, e Moretto, uma sentinela da mesma companhia, assim apelidado por todos.

Lazzari, para recuperar um cavalo, que julgava seu, retarda sua chegada ao forte, deixando, então, de retornar juntamente com seu destacamento.

Passado certo tempo, Lazzari, sozinho, mas com o cavalo à mão, segue, passo a passo, em direção ao forte.

Mas a lei do forte é dura (“Alguns minutos mais tarde, quando os soldados já haviam rompido as fileiras, lembraram que Lazzari não sabia a senha; não se tratava mais de prisão, mas da vida; se se apresentasse às muralhas, atirariam contra ele.”) e clara: “sem dizer a senha, não se entra no forte”. Mais minudentemente: “ao terceiro ‘quem vem lá’, sem resposta” – leia-se, sem anúncio da senha – “deve-se disparar”.

E foi o que Moretto fez. Lazzari não sabia a senha. Depois do segundo ‘quem vem lá’, antes de gritar o terceiro, Moretto “Apoiou a espingarda no ombro e olhou de soslaio para o sargento-mor, invocando silenciosamente um sinal para suspender”. Afinal, Lazzari já se houvera identificado, bradando por três vezes: “ - Sou eu, Lazzari! Não está vendo? Moretto, ô Moretto! Sou eu! Mas o que está fazendo com o fuzil? Ficou louco, Moretto?”.

Mas, a lei do forte era dura. E a silenciosa súplica de clemência, por Moretto dirigida a Tronk, foi em vão, já que o sargento-mor continuou imóvel e fitava severamente a sentinela.

Não restava opção a Moretto. Outra vez, ouviu a voz do amigo, acuado: “ - Sou eu, Lazzari! (…) Não está vendo que sou eu? Não atire, Moretto!”.

Mas, nas palavras de Buzzati, “a sentinela não era mais o Moretto com quem todos os colegas brincavam à vontade, era apenas uma sentinela do forte, em uniforme de pano azul-escuro com a bandeirola de couro curtido, absolutamente idêntica a todas as demais à noite, uma sentinela qualquer que fez pontaria e agora apertava o gatilho. Sentia nos ouvidos um trovão, e pareceu-lhe ouvir a voz rouca de Tronk: ‘Mire no alvo!’, embora Tronk não tivesse aberto a boca”.

Depois do tiro (“Agora que o dever fora cumprido, a sentinela pôs o fuzil no chão, debruçou-se no parapeito, olhou para baixo”), Moretto esperou, sinceramente, não haver acertado.

Alguns minutos, Lazzari permaneceu de pé. Em seguida, balbuciou, “num tom desesperado: - Ô Moretto, você me matou!”.

“O dever fora cumprido”, disse Buzzati, mas terão também, Tronk e Moretto, bem aplicado a lei?

No episódio do forte Bastiani, a aplicação da lei pautou-se, exclusivamente, por seu teor literal. Ali, não bastava ser identificado (a razão de ser da norma, sua finalidade), era preciso dizer a senha (tão-somente um meio - existiam outros - para se atingir o fim).

Com o tiro certeiro, Moretto e Tronk procederam a uma aplicação cega da lei. Prestaram, de fato, desarrazoada vassalagem à forma – alçada a fim em si mesma – em detrimento do conteúdo. Preferiram, no molde epistolar de Paulo, a letra, que mata, ao espírito, que vivifica.

Cuidemos, pois, para que a lei – aplicada – não nos diga, como Lazzari a Moretto: “Você me matou!”.

 
Por José Osterno Campos de Araújo, Procurador Regional da República e Mestre em Ciências Criminais.

1GRONDIN, Jean. Qué es la hermenéutica? Tradución de Antoni Martínez Riu. Barcelona: Herder Editorial, S.L., 2008, pg. 23.

2BUZZATI, Dino. O deserto dos tártaros. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini, Homero Freitas de Andrade. 3. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

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