A parábola suporta inúmeras interpretações. Observe-se que o porteiro não nega de forma definitiva o acesso do homem do campo à lei, apenas o adia de forma indefinida. A parábola propõe uma disposição espacial, uma cenografia, pois a lei está dentro do lugar franqueado pelos vários portões e ali se resguarda, sem nunca se expor. O que se dá a ver são seus prepostos, seus servidores e guardiães, como o porteiro. Se a lei está lá dentro, tanto o porteiro como o homem do campo estão "fora da lei". Mais ainda, se o homem do campo está de frente para o lugar onde se encontra a lei e procura vê-la, o porteiro - único representante dela ao qual ele tem acesso - está "de costas para a lei", ou seja, é alguém que a ignora, não a respeita - sutil referência à corrupção daqueles que, ao invés de serem seus guardiões, são os que a negam e sobre ela tripudiam.
A inesperada resposta final do porteiro provoca um rearranjo das ideias que o leitor teria despertado no correr do texto, fazendo-o focar sua atenção na atitude de submissa obediência do homem do campo frente ao porteiro, que lhe impõe uma espera, mas não o impede fisicamente de entrar pelos portões abertos. A resposta do porteiro força o leitor a se perguntar por que o homem do campo não ousou desobedecer-lhe e entrar de qualquer forma em busca da lei.
O desfecho abrupto da parábola provoca uma sensação de frustração no leitor, que julga nele constatar uma verdade estabelecida, a da inacessibilidade da lei ao homem do campo, ou seja, ao homem do povo.
Esse conto foi assim publicado ainda em vida por Kafka e é um fragmento de seu romance póstumo O Processo. Jacques Derrida, filósofo, pai da desconstrução falecido em 2001, faz em Acts of Literature (Routledge, New York - London, 1992) uma intrigante leitura desse conto de Kafka. Ao contrário da opinião convencional apontada acima, Derrida afirma que o homem do campo teve, sim, o desejado encontro com a lei, pois a lei é a interdição, a proibição imposta por uma autoridade que fala em seu nome e que, como tal, é acatada por aqueles a quem se dirige. Dessa maneira, Derrida retira os aspectos imaginários da lei e a reduz à sua essência - a proibição em si, o impedimento de dar larga vazão ao desejo, o submetê-lo a seu domínio. Foi exatamente isso o que aconteceu - o porteiro, enquanto representante da lei, estabelece uma ordem e o homem do campo a obedece.
Derrida amplia as questões levantadas por Kafka nessa parábola, detendo-se especialmente na dimensão narrativa e ficcional da lei, estabelecendo aproximações com a literatura e a psicanálise. Considerando equivocadas as leituras como a realizada por Lévi-Strauss, que rejeitam como superadas as proposições lançadas por Freud em Totem e Tabu, Derrida insiste que elas continuam pertinentes e devem ser lidas dentro da hipótese mais ampla de uma realidade psíquica decorrente da lógica do inconsciente e do complexo de Édipo, e não dentro da perspectiva própria da realidade histórica factual. Por isso, diz ele, a inacessibilidade da lei se explica pela vergonha que ela tem de suas próprias origens, a história de uma proibição é uma história proibida. Como Freud, Derrida pensa que a proibição, traço comum a toda lei, deriva da proibição primeva do assassinato (do pai) e do incesto.
Derrida mostra também a diferença entre o texto publicado isoladamente, como aparece nessa coletânea, e o texto similar que faz parte do romance O Processo, pequeno fragmento de um todo maior. Com isso ressalta a importância do contexto, da moldura, das bordas, elementos que delimitam e dão identidade a um escrito.
Deixando de lado os aspectos mais complexos da origem da lei propostos por Freud e sustentados por Derrida, retomamos sua ambígua relação com o homem do campo, ou seja, com a sociedade como um todo, tema central de Kafka, que o abordou também em outro conto não incluído nessa coletânea, O Problema de Nossas Leis. Nele, postula a condição de um povo que ignora completamente as leis que o regem, apesar de se ver submetido a uma nobreza. Com o passar do tempo, dos séculos, tal situação gerou duas correntes de pensamento no povo - uma que acredita que a nobreza detém o conhecimento das leis incompreensíveis e misteriosas que lhes são aplicadas e sobre elas mantém um sigilo; a segunda corrente postula que, na verdade, não há leis - a nobreza age como bem entende e suas desatinadas ações são posteriormente entendidas pelo povo como decorrência de sua obediência às secretas leis que somente ela conhece. As duas correntes de pensamento continuam debatendo, sem que um consenso seja atingido.
Em países atrasados como o nosso, esse não é um abstrato problema teórico. Basta abrir um jornal e constatar que é uma realidade cotidiana, visível e palpável. Qualquer cidadão se apercebe do quão leniente a lei fica ao se aproximar dos poderosos. Se é que se aproxima.
Por Sérgio Telles, in jornal "O Estado de S. Paulo" de 23/07/2011.
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