Qualquer país atualmente reconhece e assegura, em maior ou menor grau, o direito à presunção de inocência de quem é acusado de haver cometido um crime. Esse princípio, conquista do direito penal moderno, garante ao acusado de um crime não ser tratado, enquanto dura o processo, como se já fosse condenado. Isso implica dizer que cabe ao Estado provar que o crime existiu e que o réu o cometeu. Ademais, medidas que interfiram no direito de ir e vir do acusado só podem ser adotadas excepcionalmente, quando indispensáveis à proteção de bens ameaçados pela total liberdade do réu.
O problema maior a enfrentar, porém, é: até quando, em um processo criminal, o acusado continua a gozar dessa garantia e pode, assim, continuar solto, antes que se inicie o cumprimento da pena a que foi condenado? Vejam que Pimenta Neves permaneceu em liberdade durante todos esses anos (à exceção de alguns meses) e, somente após o esgotamento de todos os cerca de 40 recursos que interpôs, veio a ser preso.
Essa patologia do direito processual penal brasileiro tem provocado reações de segmentos importantes do Poder Judiciário e do Ministério Público. Ministros de tribunais superiores têm ressaltado a banalização do uso de instrumentos criados para a proteção da liberdade humana, como o habeas corpus, e a ausência de mecanismos judiciais eficazes para impedir que um litígio penal perdure durante anos, ou mesmo décadas.
Recentemente, o presidente do Conselho Nacional de Justiça e do Supremo Tribunal Federal propôs reforma na Constituição, de modo a evitar que recursos de natureza extraordinária — que pressupõem o julgamento da causa pelas instâncias ordinárias — atrasem o início da execução da pena, mas a iniciativa tem provocado duras críticas de alguns setores, que insistem em manter a atual estrutura normativa e não aceitam rever opções feitas pelo Poder Constituinte em 1988.
Salientando que este espaço não comporta minudente explicação, mostra-se aconselhável não descartar a possibilidade de reavaliar a extensão temporal de incidência da regra por nós adotada na Constituição da República, segundo a qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Perceba-se que asseguramos a vigência da presunção de inocência (ou presunção de não culpabilidade) até o momento em que não cabe qualquer recurso contra a decisão condenatória proferida por um juiz de direito e/ou por um tribunal (composto por vários juízes). É dizer que, somente após o trânsito em julgado da condenação, é possível iniciar o cumprimento da pena. Poderia ser diferente? Sim. Bastaria, como se faz em outros países, escrever o mesmo princípio com outra redação, sem fazer referência ao trânsito em julgado da sentença. Bastaria prescrever algo como “todos devem ser considerados inocentes até que se prove o contrário”, ou “o acusado em um processo penal deve ser considerado inocente até que se prove sua culpa”.
Essa variação textual pode parecer mera filigrana jurídica, mas é crucial para o enfrentamento do tema. Isso porque, como sabido, se os fatos e provas do processo somente podem ser apreciados sob a jurisdição — ordinária — de um juiz de direito ou de um tribunal, a interposição de recursos chamados extraordinários, ainda que adie o trânsito em julgado da condenação, não poderá agasalhar o debate sobre essas mesmas questões (probatórias ou fáticas). Em outras palavras, quando se julgar o último recurso cabível perante a Justiça ordinária, o Estado já terá comprovado a culpa do réu, de acordo com o devido processo legal, de modo a não mais incidir a regra de proteção em comento.
Evidentemente não se poderá cogitar, ainda que remotamente, de relativizar ou, o que seria trágico, abolir essa conquista civilizatória, algo, aliás, vedado pela própria Constituição da República. Mas, preservado o núcleo essencial dessa garantia, não há razão para impedir que, ajustada sua redação por reforma constitucional, seja alcançado o saudável e desejado equilíbrio entre os interesses individuais e sociais que permeiam tanto a persecução quanto a punição de autores de condutas criminosas.
Um comentário:
Um bom texto do procurador, que mostra que nem todos no Judiciário concordam com essa baderna garantista. Na verdade é preciso olhar mais um pouco no passado para entender melhor tudo isso.
Ao apresentar triunfante para os brasileiros a tão chamada constituição cidadã, Ulisses Guimarães estava pouco ligando para os direitos e garantias do cidadão. Ali estava o que seria o passaporte dele para a tão sonhada presidência do país, que ele mesmo ajudara a enganar com essa farsa constitucional. Tendo dado aos membros dos três poderes todas as garantias e prerrogativas que lhes garantiriam a impunidade em todos os desmandos que viessem a praticar, pensava que seria por todos apoiado em sua candidatura. Triste engano. Sem mais utilidade para seus "amigos", foi chutado para o lado e trocado por Fernando Collor de Mello, que hoje se beneficia do miserável legado deixado por Ulisses.
Fazendo uma comparação, as garantias dadas pela Constituição Americana, com apenas 7 artigos fundamentais e 27 emendas promulgadas em mais de 200 anos são um modelo de concisão e correção política.
Já a constituição brasileira de 1988 é de um inútil gigantismo em seus 250 artigos, 94 disposições transitórias e mais de 60 emendas em apenas 20 anos de existência, que são um modelo de baderna constitucional e de atendimento a clientelas políticas, de parlamentares corruptos a jornalistas que queriam garantir seu mercado de trabalho.
E com esse gigantismo ela garantiu mesmo apenas a impunidade dos membros dos três poderes, pois na verdade a finalidade de sua redação era apenas essa. Pretendendo regular até mesmo saneamento básico, ela nada mais fez do que servir muito bem para o principal propósito que foi criada: garantir essa impunidade da classe política em seus atos de corrupção, pouco importando que isso abrisse as porteiras do crime para milhares de bandidos em todo o Brasil.
Essa é a triste realidade que temos vivido. E de forma alguma os parlamentares vão querer mudar isso. Com mais de um terço deles respondendo a denúncias na Justiça, ainda assim dispõem nos privilégios que lhes são dados, do poder de ordenarem às estruturas policiais e judiciárias do país que punam exemplarmente qualquer desafeto político ou mesmo um cidadão que se insurja contra esse verdadeiro estado criminal em que se tornou o estado brasileiro.
Percebe-se claramente que para haver qualquer mudança nesse estado de coisas, vai ter que haver neste país uma ruptura institucional nos moldes do Estado Novo de 1937, pois o que está aí, cantado como paraíso da democracia e da cidadania, com leis redigidas e promulgadas pelos que se beneficiam da corrupção e da impunidade, nunca vai mudar por bem.
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