A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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12 de abril de 2011

Liberdade de Expressão


Uma defesa de Bolsonaro


Com o atraso que se faz necessário para serenar os espíritos, comento o caso envolvendo o deputado Jair Bolsonaro, que, ao invectivar simultaneamente contra negros e homossexuais, despertou a sincera ira de amplos setores da sociedade. Evidentemente, estou entre os que acham que o mandatário tem o direito de dizer o que pensa, por mais politicamente incorretas, ofensivas ou imorais que sejam suas declarações. Aliás, surpreendeu-me o número de pessoas (incluindo algumas que eu respeito) que advogou pela abertura de processos criminal e por quebra de decoro contra o legislador.

Não sou fã da imunidade parlamentar, mas, se há uma restiazinha de sentido neste instituto, ela está justamente na blindagem de congressistas em relação aos chamados crimes contra a honra. E sair-se com casuísmos do tipo "a imunidade só vale para declarações relacionadas ao exercício do mandato" é uma patacoada. Tentar distinguir entre os "momentos parlamentares" e os não parlamentares na vida de um legislador é exercício fadado ao fracasso, e não só porque eles trabalham pouco. Quando deu a entrevista que deflagrou o escândalo, o intimorato Bolsonaro estava longe da tribuna; ainda assim só havia sido procurado pela mídia porque tem assento no Congresso Nacional. Esse é um "instante deputado" ou não deputado?

Faço minha uma frase do linguista e militante esquerdsista norte-americano Noam Chomsky: "Se você acredita em liberdade de expressão, então acredita em liberdade para exprimir opiniões que você não gosta. Stálin e Hitler, por exemplo, eram ditadores favoráveis à liberdade de exprimir apenas opiniões que eles gostavam. Se você é a favor da liberdade de expressão, isso significa que você é a favor da liberdade de exprimir precisamente as opiniões que você despreza".

Com efeito, ninguém precisa de licença ou autorização para dizer o que todos querem ouvir. Ou bem o instituto da liberdade de expressão existe para abarcar casos como o de Bolsonaro, ou ele se torna um penduricalho inútil na legislação, uma palavra de ordem no máximo.

E eu receio que tenha sido isto o que aconteceu: a liberdade de expressão acabou se tornando uma "idée reçue" (ideia aceita). Achamos que ela é importante porque todos dizem que é importante, mas o raciocínio para aí. Minha intenção é usar a coluna de hoje para tentar mostrar por que devemos defender o direito de um cidadão dizer o que deseja mesmo que o conteúdo de suas declarações nos repugne.

Parte da culpa pelo marasmo em que o conceito de liberdade de expressão caiu é da turma dos direitos humanos (na qual me incluo). Sempre que precisamos justificá-la, abraçamos a solução preguiçosa de fazer referência ao artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que a afirma. Podemos eventualmente avançar até os artigos 5º, IX e 220 da Constituição brasileira, ou à primeira emenda da Carta dos EUA, que também a mencionam, mas continuaremos não dizendo muito. Apenas citar as peças normativas que aludem à liberdade de expressão faz com que ela pareça um direito natural, e direitos naturais, lamento dizê-lo, são uma grande bobagem. Quer dizer, eles até podem fazer sentido para quem acredita num Papai do Céu que presenteia seus povos preferidos com tábuas de leis e garantias fundamentais, mas, se quisermos ser um bocadinho mais sofisticados do que isso, precisamos pensar direitos como regras positivas que se articulam em torno de intuições morais e princípios de organização social.

Numa simplificação grosseira, a liberdade de expressão deve constar de nossos sistemas legais porque ela satisfaz a teoria da justiça embutida em nossos cérebros e, igualmente importante, tende a tornar melhor as sociedades em que vivemos.

Em "On Liberty", um primoroso opúsculo de 1859 que anda lamentavelmente meio esquecido, o filósofo John Stuart Mill (1806-1873) diz quase tudo o que é preciso dizer sobre o assunto. Como todo bom liberal inglês, ele alerta para as injustiças que um governo pode cometer contra o indivíduo, mas lembra que o Estado não é o único perigo. A sociedade, através das "opiniões e sentimentos prevalecentes", pode converter-se num poder ainda mais opressivo que o do Estado. É o que Mill chama de "tirania da maioria". E a única forma de contrapor-se a ela (e às outras potenciais ditaduras que rondam à espreita) é conferir ao cidadão liberdades em seu grau superlativo. "Na parte que concene apenas a ele mesmo [o indivíduo], à sua independência, o direito é absoluto. Sobre si mesmo, o seu corpo e sua mente, o indivíduo é soberano".

O autor detalha um pouco mais o quadro, destacando a liberdade de pensamento (que, para ser efetiva precisa incluir as liberdades de expressão e de imprensa), a liberdade de buscar o que quer que apeteça ao sujeito, ainda que isso pareça imoral aos olhos de muitos, e a liberdade de reunião, isto é, de juntar-se a outras pessoas.

Mill, é claro, não era tonto. Ele logo percebeu que uma liberdade assim forte fatalmente entraria em conflito com outros direitos que devem ser preservados. Impôs, portanto, um único limite a essa liberdade: o princípio do dano. Para o filósofo, "a única situação em que o poder pode justificadamente ser exercido contra a vontade de qualquer membro de uma comunidade civilizada é para prevenir dano a outros".

Definir o que seja dano é evidentemente problemático. Mill, porém, tinha em mente perigos físicos muito concretos e não meras indignações e chiliques por parte de gente que se ofende com facilidade. Vale lembrar que o autor também abre uma exceção para que possamos impor nossa autoridade sobre crianças e pessoas privadas de juízo, mas apenas enquanto estas não puderem ser donas de seus próprios narizes.

As liberdades de Mill, notadamente a de pensamento, estão na base de muitas das instituições que definem a modernidade. Um exemplo é a liberdade acadêmica e, com ela, o desenvolvimento técnico e científico que hoje vivemos. Até podemos conceber que ciência seja produzida num contexto de censura a ideias, mas parece forçoso admitir que seu escopo seria menor e seu ritmo, mais lento.

De modo análogo, vários autores ligam a liberdade de expressão à própria noção de democracia. A razão mais óbvia é que, pelo menos nos livros-texto, um dos requisitos para o bom funcionamento da democracia é a existência de um eleitorado bem informado.

Já quase recorrendo à teoria dos jogos é possível também afirmar que a liberdade de expressão, ao assegurar que todos os temas possam ser discutidos e sob todas as perspectivas, ajuda a sociedade a encontrar o balanço entre mudança e estabilidade. Tome-se o caso da moral. Um debate aberto permite que se proceda ao ajuste fino entre a saudável contestação e o necessário consenso. Como eu escrevi neste mesmo espaço três semanas atrás: "A figura do 'dissenter', embora possa produzir fricções de alto custo emocional para todas as partes envolvidas, também costuma levar a maioria a reformular seus argumentos (ou projetos), de modo a responder a objeções percebidas como relevantes. Essa dinâmica fica particularmente clara em situações como a de tribunais colegiados e comissões legislativas. O 'do contra' aqui, ainda que possa provocar brigas homéricas, é um elemento fundamental para melhorar a qualidade do trabalho".

E vale lembrar que, para cada Bolsonaro ecoando ideias racistas e homofóbicas, existe também um sujeito progressista defendendo pontos de vista libertários e avanços sociais. Na média, quando todos podem falar livremente, é a sociedade que sai ganhando.

PS - Depois de uma defesa tão veemente do direito do deputado Jair Bolsonaro de dizer o que pensa, só me resta dizer o que penso dele: sujeitinho detestável!

Por Hélio Schwartsman, articulista da Folha de São Paulo, bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha.com.

Um comentário:

Anônimo disse...

VLADIMIR SAFATLE

Aquém da opinião

A democracia é o regime que reconhece o direito fundamental à liberdade de expressão e opinião. No entanto ela também reconhece que nem tudo é objeto de opinião.
Uma opinião é uma posição subjetiva a respeito de algo que posso ser contra ou a favor. Mas há coisas a respeito das quais não é possível ser contra. Por exemplo, não posso ser contra a universalização de direitos e a generalização do respeito a grupos sociais historicamente excluídos. Ao fazer isto, coloco-me fora da democracia.
Por isso, há certos enunciados que simplesmente não têm o direito de circular socialmente. Por exemplo, quando alguém fala que os judeus detêm o controle financeiro do mundo, que os negros são inaptos para o trabalho intelectual, que os muçulmanos são terroristas ou que os homossexuais são promíscuos e representam uma vergonha para seus pais, não está enunciando uma opinião.
Na verdade, está simplesmente reiterando enunciados cuja única função é estigmatizar grupos, alimentar o desprezo e diminuir nossa indignação diante da violência contra eles.
Veja que coisa interessante.
Nenhum racista diz que é racista. Normalmente, seus enunciados são do tipo: "Não sou racista ou preconceituoso, mas é fato que nenhum pai quer ter um filho homossexual" ou "mas é fato que os negros nunca inventaram nada intelectualmente relevante".
Ou seja, ele apenas está dizendo "as coisas como são", mesmo que, no fundo, esta descrição vise sorrateiramente contrabandear um julgamento de valor.
O pressuposto implícito é: "Se as coisas são como são, é importante que elas continuem assim". Quem usa enunciados dessa natureza não está disposto a descrever uma realidade, mas a perpetuar uma situação socialmente inaceitável.
Por isso, que um deputado sinta-se livre para alimentar a máquina social de exclusão e preconceito ao proferir as barbaridades de praxe contra os homossexuais, eis algo que fere radicalmente a democracia. Diga-se de passagem, tal deputado já deveria ter sido cassado desde que afirmou ser a favor da tortura em prisões.
Mais uma vez, não se trata de opinião, mas de inaceitável apologia a um crime contra a humanidade.
Mas é certo que a violência, real e simbólica, contra os homossexuais só diminuirá quando eles forem reconhecidos em sua radical condição de igualdade.
A democracia não conhece meio-termo, seu igualitarismo deve ser absoluto. Isso significa que nada justifica que eles não possam ter direitos elementares, como constituir família, casarem-se e adotarem filhos. Famílias homoparentais não são mais problemáticas do que qualquer família de heterossexuais.

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VLADIMIR SAFATLE escreve às terças-feiras nesta coluna.

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Paradigma

O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)