A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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30 de janeiro de 2011

Como cego em tiroteio


Em boa hora, o ministro da Justiça demitiu o novo secretário nacional de Políticas sobre Drogas, que mal assumira propôs acabar com a pena de prisão para o pequeno traficante. A ideia era trocar a prisão por penas alternativas e assim evitar que ele seja aliciado pelo crime organizado dentro das penitenciárias. Ou seja, se não for preso, para de traficar. Você acredita nisso? Sou a favor de penas alternativas para autores de delitos menores e, sobretudo, quando não significam ameaça grave à sociedade. Não há por que meter na cadeia o sujeito que deu desfalque ou o autor de pequenas burlas no fisco. A prisão se torna indispensável para o homicida, o estuprador, o assaltante. No entanto, com frequência, se sabe de estupradores e homicidas que voltam a atacar graças a privilégios que a lei lhes concede, como o de passar o Natal com a família. Eles saem da cadeia, não retornam e voltam a estuprar e matar.

Há muita coisa errada na aplicação da justiça no Brasil. Todo mundo sabe disso. Mas muitos juristas insistem na complacência que favorece o criminoso e fere o direito dos cidadãos. Um ministro da Justiça chegou a propor a revogação da lei que pune o crime hediondo, alegando que como não reduzira esse tipo de crime, mostrou-se dispensável. Esse é o mesmo raciocínio com que se pretende pôr fim à repressão ao tráfico de droga, sob o pretexto de que, apesar dela, o tráfico cresceu.

Mas paremos para refletir: não faz séculos que a sociedade pune criminosos? Não obstante, a criminalidade continua a crescer. Devemos, então, acabar com a Justiça e todo o aparato policial, uma vez que se mostraram incapazes de reduzir o crime? Essa é uma conclusão simplista, que ignora as inúmeras causas da criminalidade. Se o comércio de drogas tem aumentado, apesar da repressão aos traficantes, é que estes contam com a colaboração preciosa de centenas de milhares de consumidores de drogas. Entre estes estão desde os garotos de escola, os adolescentes das favelas até gente bem posta na vida, como executivos, artistas, esportistas etc. O que explica o aumento do consumo de drogas, mais que a ineficiência da repressão, é a adesão crescente de pessoas de todas as classes sociais. Basta raciocinar, honestamente, sem sofismas: quando o comércio de automóveis aumenta é porque aumentou o número de compradores de automóveis. A solução do problema do tráfico está na redução do número de consumidores de drogas. E isso só se conseguirá promovendo uma ampla campanha de esclarecimento (entre outras medidas) em nível nacional e internacional, a fim de que os jovens entendam o que a droga tem de destrutivo e nefasto. Se se conseguir reduzir o consumo, reduzir-se-á consequentemente a produção e o tráfico.

No entanto, não vejo quase ninguém preocupado com isso. Raramente li ou ouvi declarações de autoridades ou militantes nesse campo que considerem a redução do número de consumidores a medida prioritária para combater o tráfico de drogas.

Em vez disso, defende-se a descriminalização das drogas e a não punição dos consumidores, que seriam, todos eles, vítimas patológicas do vício e, como tais, devem ser tratados e não punidos. Na verdade, do mesmo modo que a maioria dos consumidores de bebidas alcoólicas não é alcoólatra, a maioria dos consumidores de drogas as consume socialmente. Desse modo, pensando ajudar os que são de fato vítimas, livra-se da repressão a grande maioria dos que consomem drogas socialmente e mantêm o mercado do tráfico.

Como se isso não bastasse, surgiu agora essa nova proposta tão ou mais desastrada que aquela: livrar de prisão o pequeno traficante, que logo contou com a adesão de especialistas nesse assunto. Um deles chegou a afirmar que quem a isso se opõe é "moralista", como se consumir drogas fosse uma conquista ética e combatê-las, um retrocesso moral. A alegação de que o pequeno traficante, se preso, será aliciado pelo crime organizado, não tem cabimento, uma vez que, se ele foi preso, é porque já traficava. Trocar a prisão por trabalho comunitário seria ampliar sua área de atuação, agora sob proteção oficial.

Por Ferreira Gullar, Escritor.

Fonte: Jornal "A Folha de S. Paulo" de 30/01/2011.

2 comentários:

CONSIDERANDO BEM... disse...

Fico contente de ver, em meio a uma leva de artistas, intelectuais e outros membros de segmentos ditos 'cultos', surgir o grande Ferreira Gullar, o maior poeta brasileiro vivo, postar tão lúcidas palavras!
Sem fazer 'média' com esses intelectuóides consumidores de droga ou polianas de tablados acadêmicos, vai direto ao ponto.
Aliás, conforta-me ver que o texto, publicado neste domingo, coaduna-se com o que escrevi em maio do ano passado, em meu Blog, sob o título "Prestação de serviços para traficantes? No atacado ou no varejo..."

Eis o link: http://considerandobem.blogspot.com/2010/05/prestacao-de-servicos-para-traficante.html

Parabéns, Cesar, pela inserção.
Abraços
Fernando M Zaupa
Promotor de Justiça
www.considerandobem.blogspot.com

Vellker disse...

Finalmente um dito intelectual no Brasil sai falando em favor de limites seguros para para o que chamamos de comportamento social, que há anos, embaixo da hipocrisia da bandeira das "liberdades democráticas" levou o Brasil ao caos criminal. Notadamente a classe dita intelectual estava pouco se interessando para as "liberdades democráticas". Queria mesmo curtir seus vícios com um mínimo de consequências penais.

O resultado desolador está aí, uma sociedade criminalizada, milhares de viciados rondando os pontos mais negros das cidades e gente muito suspeita batendo na tecla da descriminalização das drogas, de forma tão açodada que deixou de ser um ponto de vista para ser já um ponto de vendas, senão de drogas, pelo menos de opinião em essência igual.

O que podemos entender é que existe um negro histórico das forças policiais no Brasil, aliado ao igualmente obscuro "trabalho" legislativo que favoreceu a posse de drogas para uso "pessoal" sempre criando brechas e caminhos para os traficantes se espalharem de forma capilar, primeiro nas vielas escuras, para depois chegarem às avenidas mais iluminadas, onde encontramos casas das classes econômicas mais altas e também prédios da administração pública. Com esse retrospecto fica fácil entender porque a bandeira das "liberdades democráticas" e "garantismo penal" sendo a táboa de salvação dos viciados e micro-traficantes garantiu a expansão do vício. Às custas da mesma sociedade, que corrompida e agredida pelos traficantes, ainda tem que pagar o custo social, médico e penal das milhares de vítimas que ele provocou. Os defensores da descriminalização são pessoas que que não podem ignorar isso e sendo assim, são no mínimo muito suspeitas.

A repressão ao tráfico tem que assumir proporções de uma verdadeira guerra. Um exemplo histórico nos faz refletir. Esquecendo do viés ideológico, ao assumir o poder na China revolucionária em 1949, Mao-Tsé-Tung conhecia bem o problema da penetração das drogas na população chinesa. O vício em ópio, heroína e cocaína assumia proporções alarmantes.

Mao então desencadeou uma repressão semelhante a uma guerra, que teve dois resultados: com traficantes não houve contemplações. Foram todos executados. Quem teve tempo de fugir para outro país, fugiu, quem não fugiu, morreu. Os viciados foram mandados para campos de trabalho forçado onde pararam de consumir drogas e se reabilitaram, se bem que uma parte não resistiu ao processo, mas isso era parte da idéia dos líderes chineses da época no combate ao tráfico.

O resultado claro está aí, a China hoje é uma potência social, política, econômica e militar. Mas em 1825 quando o governo chinês permitia a distribuição de ópio pelos ingleses aos chineses, a nação chinesa estava literalmente caída aos milhões na rua.

Os exemplos são esses e não são difíceis de seguir.

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