A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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21 de julho de 2010

Homicídio e Materialidade


O CASO BRUNO E O ‘CORPO DE DELITO’: A INCOMPREENSÃO DA LEI PODE TRAZER IMPUNIDADE

Está se confundindo “corpo de delito” com “corpo da vítima”, erro palmar, por incompreensão do Código de Processo Penal ou do latim que originou a primeira expressão (corpus delictis). Assim, há que se estabelecer, desde logo, a diferença quanto ao requisito ou necessidade do "corpo de delito”: no caso de denúncia, o "corpo de delito" não é ainda necessário, mas torna-se imprescindível para a decretação da prisão preventiva ou para a prolação da pronúncia, conforme dispõe o Código.

Para a denúncia (início da ação penal pelo Ministério Público), aplica-se o princípio in dubio pro societatis, na dúvida se denuncia, eis que para seu oferecimento basta a fundada suspeita da ocorrência de um crime de homicídio: vale dizer, inexiste a obrigatoriedade da certeza de um delito contra a vida, mesmo porque, durante a fase instrutória, torna-se ainda possível o estabelecimento da certeza jurídica de tal crime, ou seja, fazer prova do corpo de delito. Corpo de delito é, assim, a prova da existência do crime. Desse modo, para a decretação da prisão preventiva (art. 311 do CPP) e para a pronúncia (art. 413), indispensável a comprovação da materialidade (corpo de delito) do referido homicídio, ou seja, imprescindível a certeza jurídica de sua ocorrência.

Que fique claro: corpo de delito não é o “corpo” vitimado pelo crime ou “corpo da vítima”. Sendo a prova da existência do crime, quando impossível ser feito diretamente (com um cadáver), o CPP acautelou-se ao aceitá-la de forma indireta, isto porque, pode haver homicídio sem cadáver (execução mediante emprego de ácido, afogamento em alto mar, uso de explosivos, emprego de fogo até a cremação e desaparecimento das cinzas, etc.). Destarte, o processo penal brasileiro, alterna a cobrança de requisitos dependendo de que fase do processo tratamos: na fase investigatória basta a notitia criminis; para a denúncia ou queixa, a opinio delicti, ou seja, a fundada suspeita do crime. Contudo, para a decretação da preventiva (coação processual) ou a prolação de decisão de pronúncia, exige-se o corpus delicti. Existe, pois, um escalonamento ascendente da forma de cognição (notícia, suspeita e prova), retratadas pelas consagradas expressões latinas.

Restam as necessárias perguntas: como se dá a comprovação da certeza jurídica de um homicídio? Quando o delegado pode dar por concluída a investigação? No que consiste a prova da materialidade delitiva, necessária à prisão preventiva e à pronúncia?

Ao delito de homicídio, como é sabido, exige-se o corpo de delito direto (regra dos arts. 158 e 564, III, b, do CPP) porque tratante de delicta facti permanentis; nesse sentido, deixando vestígios a infração, indispensável o corpo de delito "direto"... admitindo-se-o, indiretamente, se impossível a materialização da primeira exigência (art. 167). Um caso é regra, o outro (também legal), é exceção. A exceção confirma a regra.

Por conseguinte, para a decretação da prisão preventiva e para a pronúncia, há que haver, em regra, um laudo de exame necroscópico a embasar a materialidade delitiva que, “de regra”, se dá de forma direta (examinando um cadáver).

Mas é somente com um laudo necroscópico que se comprova a materialidade? Não. Essa lição de Carrara (homicídio... “somente com cadáver”) foi literalmente “sepultada”. A doutrina, a jurisprudência e a lei evoluíram a partir do também italiano Impalomenni (Séc. XIX), ao dizer que, faltando o cadáver ou não podendo o mesmo ser identificado, supre-se tal prova física com a “certeza moral” do homicídio, que deve ser absoluta, a fim de se evitar um erro judiciário. Exemplo: centenas de pessoas assistem, em um navio em alto mar, o homicida arremessar a vítima que desaparece nas águas. Faltará o cadáver, mas não o homicídio, cuja prova será suprida pelas testemunhas oculares ofertantes da certeza absoluta. De se notar que “certeza” e “verdade” não são necessariamente sinônimos: uma está no fato (verdade) e outra (certeza), na cabeça do juiz.

A possibilidade de engano, aliás, nem a existência de um cadáver poderia afastar, já que, poderia haver equívoco sobre a causa mortis e até erro sobre a identidade do morto.

O Delegado de Polícia deverá encerrar o inquérito quando convencido do crime, mediante provas que o levem a certeza, sob pena de passar uma existência investigando sem sucesso. Por outro lado, tal convencimento pode surgir de perícias variadas (manchas de sangue, por ex.) e declarações, depoimentos e interrogatórios. O convencimento é seu, de mais ninguém. A lei não estabelece tempo preciso, cobrando apenas requisitos. Encerrado o inquérito, remete ao Ministério Público, que de igual modo, denunciará ou não, dependendo de sua opinio delicti. O convencimento, de igual sorte, será exclusivo do Ministério Público. Por fim, ocorrendo a pronúncia (para a qual se exige a prova da materialidade) o réu será remetido a julgamento pelo Júri, o qual, após amplos debates, soberanamente, condenará ou absolverá, de acordo, igualmente, com sua consciência.

Nada obsta que a Polícia continue em diligências não imprescindíveis à denúncia, podendo, no futuro, em autos suplementares de inquérito aportar novos elementos de convicção. O que não pode é a polícia ficar a reboque das cobranças do advogado do réu – este sempre clamará por um corpo-, dizendo-se não satisfeito com a prova. É seu papel. Não é juiz, nem promotor, também não é policial. Palmar também, que a “perícia em cães” ou a análise de todo o concreto ou construção de Minas Gerais , pode não apenas ser bizarro e inglório, como despiciendo.

Por Edilson Mougenot Bonfim, Procurador de Justiça (MPSP), Doutor em Processo Penal pela Universidade Complutense de Madri. Professor convidado da Faculdade de Aix-Marseille, na França. Atual Corregedor-Geral do Município de São Paulo. Foi o Promotor responsável pela acusação do Maníaco do Parque. Autor, dentre outros, de “O Julgamento de um serial killer” (2ª. ed., 2010, Impetus, RJ).

6 comentários:

Unknown disse...

o que não se pode é condenar uma pessoa antes de provar a autoria do crime, como esta acontecendo no caso Bruno e como aconteceu no caso Nardone pois como teremos um juri imparcial, haja vista que a midia esta condenando as pessoas mesmo antes de termos provas absolutas e concretas contra os indiciados...

ana luiza brown rodrigues disse...

Achei a postagem interessantíssima. Embora eu atue nas áreas Cível e do Consumidor, e às vezes nas áreas Tributária e Administrativa, a questão do corpo de delito e da materialidade do crime em casos como o do goleiro Bruno têm me causado muitas dúvidas. Obviamente, a materialidade do crime, e o "exame de corpo de delito", podem ser feitos sem a presença do corpo, mas isso dificulta muito o trabalho da acusação, pois esta tem que se basear em demais indícios, que nem sempre são tão óbvios quanto à materialidade do crime, e prova testemunhal. É claro que é muito mais fácil um promotor atuar em um júri com um corpo em que já tenha havido um exame cadavérico. Mas, por outro lado, é sabido que homicidas profissionais muitas vezes têm condições de fazer um cadáver desaparecer. Isso tem sido comentado há tempos e debatido há muitos e muitos anos. Até mesmo Oscar Wilde, em seu livro Retrato de Dorian Gray, que foi lançado há mais de cem anos, menciona um homicídio cujo cadáver era dissolvido em ácido no decorrer da história.

Leonardo Machado disse...

Há de se lembrar sempre do caso dos irmãos Naves (guardadas as devidas especificidades de cada caso) - maior erro judiciário brasileiro -, em que dois inocentes foram condenados por um crime sem corpo, que, posteriormente, descobriu-se não haver corpo devido à inexistência do próprio crime. A suposta vítima estava viva! Os acusados ficaram presos por cerca de 8 anos, foram torturados, humilhados e ao final provou-se que vontade de achar um culpado a qualquer custo é extremamente prejudicial para a própria sociedade - foram, com toda justiça, ao final indenizados regiamente pelo estado. Esse é o risco de suprir a tal prova física com a “certeza moral” do homicídio (como citado no texto), haja vista não haver até o momento a certeza absoluta do crime ocorrido nem da autoria.

Unknown disse...

Esse artigo esclareceu as minhas dúvidas acerca da materialidade do crime, pois muito é dito na mídia sobre o assunto principalmente por conta do caso Bruno, mas sem o conhecimento necessário...

Anônimo disse...

Paulo disse: Embora o MP tenha o in dubio pro sicietatis a seu favor, devemos pesnar que existe hoje uma Polícia altamente corrupta e, quando não, formadora de estatísticas premiadas pelos seus dirigentes, não importando muito a liberdade de pessoas inocentes. Polícia que investiga por achismos!A polícia do RJ vive este drama! É necessário que o MP preste mais atenção no que a Polícia lhe oferece como investigação; No Rio de Janeiro hoje, basta ser policila militar e morar na zona oeste que já está condenado! Como se todos fossem farinha do mesmo saco. Prestem atenção!!!

Anônimo disse...

Excelente a postagem... Estou fazendo minha monografia com base na materialidade do homicídio sem cadáver, e eu não achava muita coisa sobre esse assunto. Me ajudou bastante!!! Obrigada.

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O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)