A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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30 de julho de 2010

Garantismo... só pra quem comete crime? Valha!


Essa onda laxista de pensamentos, cada vez mais divulgado por alienados engravatados de plantão, que sob vestes jurídicas e discursos verborrágicos para encantar românticos de um mundo fictício (ah, o legislador.. o espírito da lei... a melhor exegese da Constituição..), está tomando dimensões imensuráveis, com enorme e inaceitável estrago à vida em sociedade.

Sob pretexto de se estar a lutar pela garantia da máxima eficiência de preceitos tidos como fundamentais e previstos na Constituição Federal, uma cáfila de auto intitulados juristas ou operadores de direito (que termo...), com lupa iluminista e antropocentrista, despreza a vida em sociedade, a harmonia das relações humanas, o bem comum, enfim, olvida toda a coletividade e valores éticos e morais sociais para, então, fazer de tudo em favor do indivíduo em si considerado.

Se é certo que a Constituição Federal estampa direitos e garantias fundamentais, também é certo que tais direitos não podem – jamais – serem observados cegamente e isoladamente, para que a toda segregação e restrição ao ser humano se buscar, ao máximo, desvencilhá-lo, sem ponderar as valorizações dos móveis que assim ensejaram as medidas restritivas.

Como é sabido, a Constituição Federal de 1.988 veio com forte dose de normatização de garantias e direitos fundamentais, ante o contexto histórico então recém atravessado pelo país, de cerceamentos, abusos, violações e toda gama de ofensa dos mais comezinhos direitos dos cidadãos brasileiros.

Agora, em momento social-político-histórico diferente, com prisma opaco, aproveitadores, Polianas e Maria-vai-com-as-outras do Direto, deturpam a real efetividade e alcance de tais normas, para buscar um estado de coisas que beneficia sobremaneira bandidos, criminosos e toda sorte de transgressores das normas criadas para a possível vida em sociedade, em detrimento de uma população honesta, trabalhadora, pagadora de seus tributos, que cumpre as normas e leis, e se vê tolhida de proteção e responsabilização dos violadores de seus direitos.

O que me fomentou a traçar tais linhas, em tom mais indignado, além da diária digressão estampada em peças jurídicas muitas vezes arrepiada por doutos ‘pró proteção máxima do transgressor e dane-se o cidadão vítima’, foi a última notícia vista hoje, no site da UOL: “Decisão do TJ-SP levanta polêmica sobre direito de autor de crime de trânsito fugir do local” (vale conferir a matéria, clicando aqui).

Eis a narrativa de que os doutos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo, por maioria, trancaram a ação penal que visava a responsabilizar um cidadão que, após atropelar e matar outro cidadão, empreendeu fuga do local, sem prestar socorro.

Como há previsão de crime no Código de Trânsito Brasileiro para quem foge do local do crime, houve a ação penal que, conforme destaca a matéria, foi trancada, sob pretexto..ops... entendimento de que ‘ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo’ e isso afetaria ‘os direitos fundamentais estampados na Constituição Federal”.

Ora, o que está a ocorrer nesse país?

Por que esses direitos fundamentais, tão invocados por esses doutores auto intitulados garantistas, não são tomados em brados - também - para a defesa do outro cidadão (sim, cidadão!) que morreu atropelado e que não teve sequer o ato piedoso e humanitário de ser salvo pelo outro dito ‘cidadão que teve seu direito de não se incriminar protegido’?

Em Direito, não se iludam, é possível se argumentar a favor de qualquer linha de pensamento, já que a legislação, além de conter imensa carga subjetiva, é absurdamente ampla em linhas interpretativas (basta pesquisar as dezenas de escolas exegéticas e métodos de hermenêutica existentes). Assim, porque essa turma – que infelizmente está criando dezenas de fiéis seguidores ante a dose diária via cursinhos e palestras, sem oportunização de outras visões, além de ser ‘a cobrança dos concursos’ – despreza sempre a interpretação que enseja sim a garantia da aplicação dos direitos fundamentais, mas na linha do razoável e proporcional, sem olvidar a preservação dos direitos dos outros e da sociedade?

Esquece o laxista do famoso discursinho ‘a cadeia é escola do crime’ que com essa conversa está a fomentar o crescimento da criminalidade e banalização da leis, e, aí sim, está a acabar com qualquer garantia de direito das pessoas de bem.

Não, não vale entrar em elucubrações mais aprofundadas sobre a visão jurídica (já disse, em direito, no plano hipotético é possível fundamentar o que quiser) desses teóricos de outras paragens e outras realidades (não só de outras nacionalidades, sociedades e culturas, como também de outros planetas...só pode ser!); mas, vale dizer, certamente prestam enorme desserviço àqueles que lutam por seus direitos, esses sim seguindo diariamente as normas, respeitando o próximo e sonhando com uma vida harmônica em sociedade.

Assim, duvide de quem acredita nessa interpretação equivocada do garantismo (o apregoado ‘garantismo tupiniquim’), inclusive já havendo diversos trabalhos a demonstrar que houve (e está a haver) equívoco na difusão em território brasileiro dessa linha de pensamento jurídico, porquanto ou está preso a um dever momentâneo (precisa passar em concursos que só exigem essa visão), ou estão seduzidos pela visão romântica e iluminista do homem em si considerado (ou seria, em nosso caso, como na primeira fase do romantismo, a visão do ‘bom selvagem’?), ou não conseguiram ampliar seus horizontes ante a avalanche de cursinhos-livros-palestras apenas nesse sentido ou, por fim, estão tomados por interesses escusos e nefastos, amparados pela busca do lucro espúrio, decorrente de venda de tais ‘produtos’, de dinheiro de clientes transgressores, lobistas, crime organizado ou preservação de seu cargo e salário, conforme seu dever funcional.

Quando cidadãos comuns e despidos do ranço jurídico me perguntam o por quê de tanta falta de rigor a transgressores da lei e violadores de direitos dos mais variados matizes, com uma notória onda de desrespeito ao dito cidadão de bem, fico querendo entender... ou, então, como destacado acima, até devo saber a resposta... duro é não ter forças – em meu direito fundamental e individual de indignação – para poder mudar a situação...

Faço minha parte... na defesa da sociedade e cidadãos de bem...até vir um garantista tupiniquim para ajudar o transgressor e se somar à horda de aniquiladores dos valores éticos e morais que sonhamos para nós e futuras gerações... se houver futuro...

Por Fernando Zaupa, Promotor de Justiça do Tribunal do Júri em Campo Grande/MS e editor do blog Considerando Bem...

2 comentários:

Vellker disse...

Bom texto do promotor, mas continuaremos a seguir neste caminho suicida de uma estrutura social e política que só se importa com uma coisa : a manutenção de privilégios e prerrogativas obscenas. Tudo o que hoje acontece de ruim na aplicação da lei a transgressores vem desse conceito do privilégio acima de tudo, que aplicada pelos poderosos na nefasta constituição cidadã de 1988 resultou no cenário de destruição social e política que vivemos hoje. Tudo disfarçado com o belo nome de “garantias individuais”. Especialmente a dos transgressores que redigiram aquele texto e conseguiram com sucesso “garantir” sua impunidade e a de seus sucessores do mesmo pensamento.

Enquanto não se acabar com essa cultura, a situação atual só tende a piorar, nos colocando no mesmo caminho que hoje trilha o povo mexicano, já dominado por tal estrutura há muito tempo. Hoje o território mexicano começa a se dividir em imensas fazendas, onde narcotraficantes e políticos dominam o povo pela força das armas e o próprio exército recua atemorizado. Aqui estamos nos primórdios disso.

O absurdo acúmulo de capítulos, parágrafos, alíneas, incisos, portarias, decretos, emendas e tudo o mais que pudesse vir a retocar e reforçar a noção de algum privilégio é que propicia isso. Temos uma constituição e um código penal de conveniência e isso só será reformulado mediante a ação de um regime autoritário nos moldes do Estado Novo. Por bem aqui jamais o cidadão, esse sim de bem, conseguirá alguma coisa.

Dirão alguns que isso é um retrocesso. No entanto acham normal o sistema de leis reger-se por privilégios inomináveis aos que fazem parte da chamada elite social da forma que vemos hoje, nos mesmos moldes em que uma atrasada aldeia no mais perdido recanto africano era dirigida pelo chefe que se concedia e dava privilégios a seus amigos no caso de uma pendência jurídica. É só não chamar a aldeia de canibais pelo seu nome certo, mas sim de aldeia constitucional e estará tudo bem. Constituição às custas da carne e sangue do cidadão.

Fica difícil para um magistrado explicar ao cidadão porque não consegue atingir com o rigor da lei os transgressores. Fica mesmo.

Fica difícil explicar porque magistrados envolvidos em casos de corrupção milionária como o acontecido há pouco tempo no Mato Grosso foram apenas aposentados, quando deveriam ter sido presos, despojados de cargos e bens, até que pagassem à sociedade que neles um dia confiou tudo o que fizeram de errado. Isso não tem mesmo explicação.

Fica mesmo difícil entender porque um cidadão condenado por passar um cheque sem fundos é impedido de participar de uma eleição, enquanto que um magistrado envolvido no mesmo caso pode se candidatar a deputado federal porque a lei Ficha Limpa só prevê o que chamamos de crimes. Isso não é crime, é prerrogativa.

Fica mesmo difícil explicar ao cidadão, porque num caso desses e sabe-se lá quantos aconteceram, ele, o cidadão, foi a vítima de um atropelamento jurídico premeditado e propiciado por essas leis e o atropelador não só não foge, mas á chegada dos policiais e promotores ainda se apresenta como o beneficiário da aposentadoria que o cidadão, ali caído numa poça de sangue será condenado a lhe pagar dali em diante, em suma, um atropelamento vitalício, a ser repetido todos os meses da sua vida de cidadão.

Fica difícil explicar ao cidadão que isso não foi crime, apenas exercício de prerrogativas, aplicação de normas constitucionais. Se eles, os transgressores não querem que isso, o cidadão quer.

Vellker

http://cartasdepolitica.blogspot.com

Daiane disse...

Eu tive uma professora adepta do garantismo. Ela me disse que eu só conseguiria entender o direito penal se visto por esta ótica, o que me soou estranho. Nunca entendi o motivo de bandidos terem tantas regalias e a sociedade ser abandonada por isso. Espero que esta concepção mude, mas que a mudança ocorra de forma equilibrada. Acredito que o garantismo e a aplicação dos princípios constitucionais devem ser ponderados de forma igualitária, entre o agente e a vítima. Alguns pontos também deveriam ser observados como o fortalecimento e criação de novos presídios (de nada adianta querer ressocializar alguém em ambientes insalubres, abandonados pelo Estado, em que o crime organizado faz uma espécie de "segundo estado", com suas próprias regras), maior punição a agentes públicos desvirtuados criminalmente de suas funções (justamente por cuidarem de patrimônio da coletividade), bem como certo apoio psicológico e social por parte do Estado às vítimas e/ou famílias atingidas pelo crime. Creio que a verificação da atuação policial nos moldes da lei também deve ser observada, esta com muito rigor, pois a sociedade respeitará se for respeitada. O que acontece muitas vezes é que agentes de segurança pública não estão fazendo cumprir as leis, e sim descumprindo-as e o MP deve atententar para este fato.

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O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)