A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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24 de julho de 2009

Três reflexões sobre as crianças


1. Existem adultos que sentem atração problemática por crianças. Pedófilos, eis o termo. Pessoalmente, a minha tara é a inversa. Eu sinto medo delas. Vejo uma criança por perto e sinto um impulso imediato de saltar pela janela. Não sei se existe termo clínico apropriado para descrever a minha condição. Pedofobia serve?

Se não serve, desconfio que vai servir em breve. Sobretudo se o governo de Gordon Brown, no Reino Unido, não repensar a sua última insanidade.

A questão é a seguinte: a pedofilia existe no país em números alarmantes? Então a solução que o governo trabalhista arranjou foi obrigar todos os adultos que trabalham com crianças a passar por exame criminal prévio. Professores, técnicos de saúde e até escritores de literatura infantil que regularmente visitam escolas terão de pagar 64 libras para serem checados com precisão policial. Uma vez aprovados pelo Big Brother da pedofilia, terão direito a documento onde será expressamente declarado que eles não sonham com a Shirley Temple.

Uma inovação, sem dúvida. A "presunção de inocência", figura jurídica que estrutura os Estados de Direito ocidentais, determina que todos os indivíduos são inocentes, até prova em contrário.

O Reino Unido, pátria imortal das liberdades individuais, pretende reverter o princípio. Todos serão pedófilos, até prova em contrário. Eu avisei. Saltar pela janela é a solução.

***

2. Testes de paternidade para uso doméstico? Precisamente. Cientistas norte-americanos desenvolveram teste fácil e indolor que permite a pais ou maridos desconfiados saber se o filho, ou alegado filho, é mesmo deles. O teste é feito com saliva (do "pai" e do "filho"). Depois, é só enviar a amostra para o laboratório e esperar pelo resultado.

Contam os cientistas que, nos Estados Unidos, metade dos testes dão resultado fatal. Na Europa, espera-se agora que o cenário não seja muito diferente.

O caso é curioso do ponto de vista estritamente filosófico. A civilização ocidental assenta na velha crença platônica de que só o conhecimento verdadeiro traz felicidade duradoura. "Conhece-te a ti próprio"; "só uma vida examinada vale a pena ser vivida"; "penso, logo existo" -seria possível construir uma história da filosofia com máximas e provérbios que sublinham a mesma tese: sabedoria é virtude; virtude é felicidade.

Nunca comprei essa simplória versão das coisas. Prefiro acreditar, como dizia um velho professor inglês, que o fato de descobrirmos a verdade não implica necessariamente que a verdade será interessante. Basta olhar para nossas privadíssimas existências: uma pessoa que sabe padecer de câncer será necessariamente mais feliz por isso?

Arrisco nova tese: a mentira é, muitas vezes, um mecanismo insubstituível de sobrevivência. Curiosamente, Jeremy Campbell escreveu um livro notável sobre o assunto, uns anos atrás: "The Liar's Tale: a History of Falsehood". Recomendo. Mas divago.

Por isso imagino as consequências imediatas desses testes de paternidade na Europa: milhares de famílias que viviam as suas vidas protegidas pelo doce manto da ignorância; milhares de famílias que, no curto prazo, serão simplesmente desfeitas pela luz radiosa da verdade. Valerá a pena?

***

3. Uma amiga tenciona abrir restaurante em Lisboa. Espaço para fumantes, onde animais ou crianças não entram. As autoridades públicas autorizam a exclusividade para fumantes e concordam com a interdição de animais. Mas, estranhamente, dizem que a proibição de crianças é ilegal e até inconstitucional.

Nunca tinha pensado sobre o tema, exceto quando janto fora de casa e existe uma criança no espaço a berrar, a correr por entre as mesas ou a importunar os presentes. De preferência sob o olhar compassivo e maravilhado dos progenitores.

Por vezes, lavro um tímido protesto aos ouvidos do garçom. O garçom comunica o meu desagrado aos ouvidos dos pais. Os pais esquecem os meus ouvidos e verbalizam insultos como se eu fosse obrigado a partilhar o amor parental deles. Por pouco não me pedem para eu adotar a família inteira.

Um restaurante só para adultos resolveria a situação de forma democrática: as regras seriam conhecidas e a clientela que decidisse. Quem quisesse um restaurante, que viesse ao restaurante. Quem quisesse um parque infantil, que fosse a outro restaurante.

Infelizmente, o meu país não respeita os seus proprietários. E não respeita o direito deles de escolher o seu tipo de clientela. Para início de conversa, haverá coisa mais ilegal e até inconstitucional?

Por João Pereira Coutinho - Jornal "A Folha de S. Paulo" de 21/07/09.

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