Antes da nova lei, a tipificação desse fato (sequestro relâmpago) gerava indisfarçável controvérsia (na doutrina e na jurisprudência), havendo três correntes:
Não era incorreto o entendimento de que referido comportamento (popularmente chamado de sequestro relâmpago) configurava qualquer um dos três tipos penais, a depender do “modus operandi” utilizado pelo agente:
a) se para subtrair a coisa alheia móvel o agente precisou privar a vítima da sua liberdade de locomoção, temos o crime de roubo majorado pelo sequestro;
b) se para receber a indevida vantagem econômica o agente, dependendo da colaboração da vítima, restringe sua liberdade de locomoção, configurado estará o crime de extorsão qualificada pelo sequestro;
c) se a vantagem depender do comportamento de terceiro, servindo a rápida privação da liberdade da vítima como forma de coagi-lo a entregar a recompensa exigida, extorsão mediante sequestro.
O que se discute, agora, é se o “sequestro relâmpago” (gênero) do art. 158, § 3° (espécie), com resultado morte, é ou não hediondo?
Guilherme de Souza Nucci já se manifestou, lecionando que o descuido do legislador não permite considerar o “sequestro relâmpago” hediondo, em nenhuma de suas formas: “A forma eleita para transformar delitos em hediondos é a inserção no rol do art. 1° da Lei 8.072/90. É o critério enumerativo (...). Não constar desse rol elimina a infração penal do elenco dos hediondos. A falha é, pois, evidente. São hediondos o roubo com resultado morte (mas não o roubo com resultado lesão grave), a extorsão qualificada pela morte (mas não a extorsão com resultado lesão grave), a extorsão mediante sequestro, com resultado lesão grave ou morte. Não se menciona a extorsão com restrição à liberdade, mesmo que com resultado lesão grave ou morte (art. 158, § 3°, CP) (...). O novo delito do sequestro relâmpago, com resultado lesão grave ou morte da vítima, tem penas compatíveis com a gravidade do fato, mas não ingressa no contexto da Lei 8.072/90.” (Manual de Direito Penal, 5.ed, São Paulo: RT, 2009).
Também já tivemos o cuidado de alertar, no mesmo sentido, de que a extorsão do § 3° não está catalogada no rol exaustivo da Lei n° 8.072/90 como delito hediondo, sendo vedada analogia contra o acusado. Assim, mesmo se do crime resultar na vítima lesão corporal grave, o crime não se converte em hediondo, aplicando-se, tão-somente, as penas previstas no art. 159, § 2º (é extorsão mediante sequestro quod poenam).
No entanto, situação diversa ocorre na provocação (dolosa ou culposa) da morte da vítima, hipótese em que o crime será, sim, hediondo, visto que nada mais é que desdobramento formal do tipo do art. 158, § 2°, tendo o legislador preservado a matéria criminosa, explicitando, somente, seu mais novo “modus operandi”. Em outras palavras, a nova qualificadora (com resultado morte) já estava contida no parágrafo anterior, especificando-se, no derradeiro parágrafo, um meio de execução próprio (restrição da liberdade de locomoção da vítima).
A interpretação literal deve ser acompanhada da interpretação racional (teleológica). As regras aplicadas ao delito geral (art. 158, § 2º) devem ser mantidas ao crime específico (art. 158, § 3º), permanecendo hediondo (quando ocorre o resultado morte).
Se a extorsão (simples, genérica) com resultado morte constitui crime hediondo, que sentido teria afirmar que a extorsão (qualificada, específica) não o seria? De que modo podemos chegar a essa conclusão? Por meio da interpretação extensiva (que não se confunde com a analogia). Qual é a diferença entre elas? A seguinte: (a) a interpretação extensiva não foge da vontade do legislador; (b) na analogia aplica-se a um fato análogo (“B”) o que o legislador previu para outra situação (“A”). Não é vontade do legislador abarcar o fato análogo. O aplicador da lei penal não pode fazer uso da analogia contra o réu (porque falta, nesse caso, a vontade do legislador). Da interpretação extensiva ele pode fazer uso, desde que seja inequívoca a vontade do legislador.
Disse o legislador (na lei dos crimes hediondos, art. 1º - Lei 8.072/1990) que a extorsão com morte é crime hediondo. Ora, não importa a forma de execução do delito (com privação ou sem privação da liberdade da vítima). Toda extorsão com morte (por vontade do legislador) é crime hediondo. O § 3º do art. 158 apenas detalhou uma forma de execução do delito (com privação ou restrição da liberdade da vítima). O que vale para a extorsão (simples) com morte, vale também para a extorsão (específica) com morte. Note-se: em nada se alterou o substractum do delito. O conteúdo do injusto é o mesmo. O que fez o § 3º foi especificar uma forma de execução do delito de extorsão.
Visão legalista versus visão constitucionalista: qual é o problema da visão legalista do Direito penal? É que ela se prende exageradamente nas formas literais ou gramaticais, sem atinar para o seu conteúdo. O penalista legalista (da Escola técnico-jurídica de Rocco, Binding etc.) foi treinado para decifrar as minúcias linguísticas da lei. Vê as árvores, mas não consegue enxergar a floresta. Ele se perde nos meandros formais. Perde a noção do proporcional e razoável. Aliás, não é que perde, muitas vezes nem chega a conquistar.
Se a extorsão simples com morte é crime hediondo, como se pode negar que a extorsão qualificada (ou especificada) com morte não o seja? Não se trata de violar o princípio da legalidade: essa garantia formal não pode nunca ser esquecida ou aniquilada. Mas se o legislador, na lei, já escreveu que a extorsão com morte é crime hediondo, claro que a nova forma delitiva contemplada no § 3º do art. 158 constitui crime hediondo (quando ocorre morte). Isso nada mais representa que um desdobramento do injusto típíco do § 2º.
Qual constitui outro erro dessa visão legalista? Para além de não captar o sentido do proporcional e do razoável, dentro, evidentemente, da legalidade, a visão legalista cai num outro equívoco que é o seguinte: ela acompanha, subscreve e apoia tudo quanto é bobagem que o legislador escreve nas leis. Veja o paradoxo: o legalista positivista é capaz de negar a aplicação da mesma lei para fatos substancialmente idênticos e, ao mesmo tempo, aceitar um mundo de atrocidades e arbitrariedade escritas pelo legislador na lei (sem nenhum senso crítico).
Visão constitucionalista: numa visão constitucionalista o fundamental é respeitar a vontade do legislador (garantia formal da legalidade), porém, sempre submetida aos critérios limitadores da razoabilidade, proporcionalidade etc.
A extorsão (especificada no § 3º, quando resulta morte) é crime hediondo? Sim, por força de uma interpretação extensiva (que ainda atende a vontade do legislador, sem entrar na analogia, que é vedada no Direito penal, contra o réu). Todas as disposições da lei dos crimes hediondos devem, então, ter incidência contra o réu (que praticou uma extorsão específica com resultado morte)? Vamos devagar: nem tudo que o legislador projetou para os crimes hediondos é válido. Ao legislar sobre os crimes hediondos ele foi além do que podia (escreveu mais do que devia). Ao proibir liberdade provisória, ao proibir progressão de regime etc., foi muito além do que lhe competia. Ou seja: quem tem o domínio da visão constitucionalista do Direito consegue distinguir o que é legítimo (válido) e o que é ilegítimo (inválido). Esse exercício de proporcionalidade, razoabilidade, é que falta ao legalista (que é muito mais simplista, muito mais subsuntivista, muito mais formalista). O constitucionalista trabalha com outro parâmetro de referência: que é a ponderação, a equidade etc.
Concluindo: o crime de extorsão previsto no § 3º do art. 158 do CP, quando resulta morte, é crime hediondo? Sim (por força de uma interpretação extensiva, do § 2º, com resultado morte). Então, todas as disposições da lei dos crimes hediondos são aplicáveis nesse caso? Nem todas (somente as válidas, as constitucionalmente legítimas).
Por ROGÉRIO SANCHES CUNHA, Promotor de Justiça (MP/SP), e LUIZ FLÁVIO GOMES, Juiz de Direito aposentado (TJ/SP).
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