A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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29 de maio de 2009

(in)coerência?


Convide "Pedrinho Matador" para jantar, ministro Marco Aurélio

Como sabem os bedéis das faculdades de Direito, a pena não se presta exclusivamente à possível recuperação do criminoso condenado. Serve também para excluir de vez do convívio social os definitivamente irrecuperáveis, os sociopatas sem remédio. E é um castigo exemplar, instrumento de dissuasão utilizado com freqüência para punir pecadores que dificilmente voltarão a violar a lei. Raríssimos assassinos passionais reincidem, por exemplo. Nem por isso um Antonio Pimenta Neves, ainda em liberdade quase 10 anos depois de executar a ex-namorada com um tiro nas costas e outro na cabeça, pode ser poupado da prisão. Pouco importa se banca o arrependido. Precisa pagar pelo que fez.

O ministro Marco Aurélio Mello revoga essa verdade elementar quando incorpora no Supremo Tribunal Federal o juiz misericordioso, informa um trecho do palavrório que o transformou em paraninfo de todas as turmas de doutores em crime hediondo diplomadas a partir de fevereiro de 2006: ‘’… entendeu-se que a vedação de progressão de regime prevista na norma impugnada afronta o direito à individualização da pena (CF, art. 5º, LXVI), já que, ao não permitir que se considerem as particularidades de cada pessoa, a sua capacidade de reintegração social e os esforços aplicados com vistas à ressocialização acaba tornando inócua a garantia constitucional”. Resumo da ópera em língua de gente: todo mundo é recuperável.

O ministro nunca viu uma cadeia ao vivo. O promotor público Flávio Nunes da Silva lida há muito tempo com a multidão engaiolada no presídio de Araraquara. Há poucos anos, conheceu no tribunal do júri o réu que lhe caberia acusar: Pedrinho Matador, uma celebridade do universo carcerário. Negro, menos de 1,70, magro, braços extraordinariamente dilatados por centenas de flexões diárias, o autor comprovado de 18 homicídios acabara de engrossar o prontuário ao liquidar um vizinho de cela. Condenado outra vez, despediu-se amistosamente do promotor: “Até a próxima, doutor”. A próxima não demorou. Flávio não se surpreendeu: “Mato por prazer”, avisa a frase tatuada num dos braços do bandido. É um recordista. Mas não é tão diferente dos delinqüentes beneficiados pela clemência de Marco Aurélio.

Convide Pedrinho Matador para jantar, ministro. Alguns conselhos sensatos poderão ser o começo da ressocialização. E também o começo de uma bonita amizade.


***

Ministro misericordioso com crimes hediondos mantém na cadeia condenada por furto de chiclete

Em ação no Supremo Tribunal Federal desde o governo do presidente Fernando Collor, o ministro Marco Aurélio Mello interpreta alternadamente, com a mesma aplicação, dois papéis antagônicos: o xerife durão, que faria bonito em qualquer faroeste classe B, e o magistrado mais compassivo que santo de sermão. É um tipo de ciclotimia sem prazo fixo, e portanto só se pode identificar o personagem sob a toga quando o artista já está em cena. Poucos previram, por exemplo, que Marco Aurélio concederia a Salvatore Cacciola aquele habeas corpus que o pecador de carteirinha transformou em vale-viagem. Até as birutas dos aeroportos sabiam que, recuperado o direito de ir e vir, Cacciola iria para a sala de embarque e não viria mais. O ministro misericordioso acreditou que o réu renunciaria aos passeios de lambreta em Roma para passear com uniforme de preso no pátio da cadeia.

Neste 20 de maio, quem apareceu no STF foi o homem-da-lei implacável. Sobrou para uma mulher condenada a dois anos de prisão pelo furto de caixas de chiclete que, em 2007, somavam R$ 98,80. Marco Aurélio caprichou no despacho. Primeiro, admitiu que o prejuízo causado pelo crime ocorrido na cidade mineira de Sete Lagoas, é de pequeno valor. “No entanto”, mudou de rumo, “não se tratou de furto famélico”. (Em língua de gente: como não se come chiclete, a mulher não roubou alimentos para matar a fome. Não cometeu, portanto, o que em juridiquês castiço é chamado de “furto famélico”). Minucioso, o ministro também registrou que a ré já foi condenada por delitos semelhantes.

Castigada em 1ª instância, a mulher recorreu ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que concordou em reduzir a pena para um ano e três meses, mas rejeitou o “argumento de insignificância” para anular a condenação. (Em lingua de gente: para os padrões brasileiros, aquilo era nada. Os desembargadores discordam). O Superior Tribunal de Justiça avalizou a opinião do TJ e a história pousou no STF. Até que a corte marque a data para o julgamento em definitivo, a protagonista do caso do chiclete ficará na cadeia. Assim decidiu Marco Aurélio.

Se tal rigor se estendesse a todos, nada a objetar. Se o ministro agisse com coerência, nenhum reparo a fazer. Ocorre que, como lembrou em três comentários o leitor Luiz Carlos, foi Marco Aurélio Mello o responsável pela concessão do tristemente histórico habeas corpus que, em 2006, violentou a Constituição e antecipou o carnaval na ala da turma dos crimes hediondos. Desde 1988, vigorava o trecho do artigo 5° segundo o qual “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia (…) … os definidos como hediondos (…)”. Em 1990, o Congresso definiu essa espécie de crime e resolveu que a pena imposta aos condenados será cumprida em regime fechado. As coisas mudaram dramaticamente depois da sessão de 22 de fevereiro de 2006.

Por 6 votos a 5, o STF aprovou a decisão solitária de Marco Aurélio que concedeu o habeas corpus reivindicado por um condenado a 18 anos de reclusão pela autoria de crime hediondo. Depois de uma complicada discurseira sobre “direito à individualização da pena”, “particularidades de cada pessoa”, “capacidade de reintegração social” e “esforços aplicados com vistas à ressocialização”, o juiz piedoso declarou a Constituição inconstitucional e mandou soltar o criminoso.

Ele ficou dois anos na cadeia. Pouco mais do que ficará a mulher que furtou chiclete.

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