A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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16 de maio de 2009

Breve Reflexão sobre a Vergonha

A que ponto chegamos!

A palavra “vergonha” é uma destas palavras ambíguas e é de uma peculiar forma de ambigüidade. Tem ao menos dois sentidos, sendo que um designa um sentimento moral positivo, mas outro negativo - tudo dependendo do contexto sentencial em que ocorrem.

Consideremos (1) “Ele sentiu uma grande vergonha de ter feito o que fez”. Supondo que o indivíduo em questão realmente tenha se sentido envergonhado por uma ação praticada, a vergonha aqui é um sentimento moral positivo, pois é um efeito produzido pelo reconhecimento de culpa acompanhado de arrependimento.

Suponhamos agora (2) “Ele não sentiu a menor vergonha diante de tudo aquilo que fez”. Era esperado que o indivíduo que praticou uma ação vergonhosa sentisse vergonha pelo que fez. Mas a não-produção do referido efeito é uma indicação de que ele não se sentiu culpado e, por não ter se sentido assim, não experimentou nenhum arrependimento.

Segue-se, portanto, que o sentimento de culpa leva à vergonha e esta ao arrependimento.

Temos de fazer uma distinção entre culpa e o sentimento de culpa. Aquela tem um caráter objetivo, mas este tem um caráter subjetivo. Tanto no sentido ético como no jurídico, uma alegação de culpa pode e tem que ser provada, mas o sentimento de culpa simplesmente não pode ser provado, embora possa ser inferido por um sinal: o rubor da face indicando vergonha.

E é justamente por isso que um indivíduo pode ser culpado e sentir vergonha, mas pode não sentir e ser culpado e pode ainda não ser culpado e sentir.

Na peça de Sófocles Édipo-Rei, a personagem principal Édipo mata Laio, seu pai, mas não sabendo que o indivíduo morto em um duelo era seu pai; casa com Jocasta, sua mãe, sem saber que aquela linda mulher era sua mãe.

Devemos considerá-lo autor de um parricídio e de um incesto? Não há dúvida que ele praticou um homicídio, mas este teve lugar num duelo, cabendo, portanto, a alegação de legítima defesa. Além disso, na Grécia antiga os duelos não eram punidos por lei, eram considerados uma questão de honra.

Não há dúvida de que ele casou com sua mãe, mas não teve a intenção de cometer um incesto ao desposar a rainha de Tebas. Talvez fosse cabível a alegação de um incesto culposo, mas jamais doloso. Mas sendo culposo ou não, Édipo se sentiu culpado pelo ato incestuoso, bem como pelo homicídio de Laio. E em conseqüência disto, furou seus olhos e passou a vagar pelo mundo como um mendigo.

É conhecido o caso daquele indivíduo que, padecendo de um grave transtorno mental, vai a uma delegacia de polícia e confessa ter cometido um homicídio que não cometeu. Ele não é objetivamente culpado, mas isto não o impede de se sentir culpado e sentir vergonha pelo ato que alega ter praticado.

Por outro lado, sabemos que um psicopata, mesmo tendo cometido diversos crimes hediondos, nunca se sente culpado e jamais se sente envergonhado. Considera-se que ele é definitivamente incapaz de ter sentimentos morais.

Contudo, seria açodado considerá-lo um indivíduo imoral: ele não é um indivíduo moral nem imoral, porém amoral. Nem tampouco está além do bem e do mal, tal como o Zaratustra de Nietzsche: Ele está aquém do bem e do mal, tal como uma criança de colo. Porém, diferentemente dela, ele é um caso de internação e tratamento psiquiátrico.

De tudo isso que dissemos, podemos concluir que a capacidade de sentir vergonha é uma das mais importantes feições do homem como ser moral, seja quando ele reconhece seus erros e se arrepende dos mesmos, seja quando olha à sua volta a se reconhece como um homem moral vivendo em uma sociedade imoral, de acordo com o título do livro de Reinhold Niebuhr: Moral Man and Immoral Society (Nova Iorque. Scribner’s. 1932).

Entre nós, talvez ninguém tenha expressado melhor a referida condição do que Rui Barbosa nos inícios do século XX:

Sinto Vergonha de Mim
Tenho vergonha de mim,
Pois faço parte de um povo que não reconheço
Enveredando por caminhos que não quero percorrer.
Ao lado da vergonha de mim,
Tenho pena de ti,
Povo deste mundo!
De tanto ver triunfar as nulidades,
De tanto ver prosperar a desonra,
De tanto ver crescer a injustiça,
De tanto ver agigantarem-se os poderes
Nas mãos dos maus,
O homem chega a desanimar da virtude,
A rir-se da honra,
A ter vergonha de ser honesto.

A que ponto chegamos! Os desonestos não sentem vergonha nenhuma; os honestos sentem, mas sentem vergonha de serem honestos!

Por Mário Guerreiro, Doutor em Filosofia pela UFRJ.

Fonte: Parlata

Um comentário:

Cartas de Política disse...

Vergonha é sim o que temos, não por sermos honestos, mas sim pela situação de impotência como cidadãos em que nos encontramos hoje, reféns dessa máquina de corrupção que os desonestos criaram, ocupando cargos legislativos e administrativos.

Ao longo dos últimos 25 anos, sob o bonito nome de "garantia dos direitos, cidadania e democracia", os desonestos, com falsas e bem calculadas promessas levaram ao êxito uma das mais bem elaboradas operações de seqüestro do Estado, como o entendemos no conceito de estrutura de uma nação.

Poucas nações no mundo passaram por tal processo e para saírem dela pagaram um preço alto, em geral conflitos sociais de extrema gravidade.

Com os controles administrativos do executivo, do legislativo e do judiciário nas mãos, jamais os desonestos sairão por bem. Sairão como saíram em outras nações, que para defenderem sua sobrevivência como tal, se polarizaram social e politicamente e na sequência partiram para um conflito interno.

A intensidade de tal conflito varia, mas é a única alternativa que resta aos honestos.

Por honestos entendemos aqueles que tem noção de sua moralidade, que são leais à sua nação e que acima de tudo conquistam seus bem às custas do seu trabalho.

Por desonestos entendemos aqueles que tem noção da sua imoralidade, que são desleais à sua nação e que acima de tudo conquistam seus bens as custas do trabalho dos outros.

Só conseguindo o poder do aparato do estado é que eles conseguem se manter, por enquanto, vivendo de privilégios, prerrogativas perversas e acima de tudo tornaram-se em sua desonestidade, absolutamente indistingüiveis da corrupção.

E é somente com o desaparecimento dela que os honestos poderão viver de forma digna novamente.

E o desaparecimento da corrupção leva, ao meditarmos sobre isso, no desaparecimento puro e simples de quem se identifica com ela e vive dela.

Essa foi a saída que outras nações encontraram para isso e não foi pacífica.

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O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)