A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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2 de abril de 2009

Hipnose e crime


Por Damasio de Jesus


Suponha-se que uma pessoa mesmerizada[1] cometa um crime e, na defesa, procure provar inocência com o argumento de que o praticou em estado hipnótico e, portanto, sem consentimento da vontade e sem culpabilidade. Nullum crimen sine culpa.

Depois de apreciar a hipótese sob o aspecto penal durante muitos anos e em muitos artigos, resolvi escrever sob outro prisma.

Esse assunto pode - e deve - ser analisado pluridisciplinarmente. Não é matéria que o Direito possa considerar abstraindo-a de outras ciências, como a Medicina e a Psicologia.

Vou tentar expor o que penso, à luz do que estudei em Moral, sobre alcoolismo, e tentar aplicar, por analogia, algumas regras.

O princípio básico é de que ninguém pode ser inculpado por aquilo que não fez por livre e espontânea vontade. Sem conhecimento e consentimento, estuda-se em Moral, não pode haver delito.

O conhecimento e o consentimento podem ser plenos ou incompletos, dando margem a uma larguíssima faixa de incerteza que constituem um campo estudado minuciosamente pelos moralistas. A responsabilidade e a culpabilidade não são, pois, conceitos absolutos, mas têm sentido relativo, maior ou menor, dependendo das circunstâncias. Em Direito Penal, a medida da pena varia de acordo com a culpabilidade do réu. No estudo da Moral, é a chamada Casuística.

Uma pessoa alcoolizada, ou sujeita à ação de algum medicamento ou substância estupefaciente, que comete um delito, pode não ter a mesma culpabilidade que teria se o praticasse em situação normal de consciência. Mas não é isenta de responsabilidade, a menos que tenha se alcoolizado ou drogado sem querer (cf. art. 24 do Código Penal).

Numa comédia inglesa que assisti em Viena, as cenas ocorrem num velório, durante o qual várias pessoas tomam comprimidos de um poderoso alucinógeno por engano, julgando estarem tomando um calmante comum. O resultado hilariante é que acontecem as mais disparatadas situações. No caso, essas pessoas não tinham, é claro, responsabilidade moral alguma.

Já na hipótese da pessoa que se embriaga ou se droga sabendo que, durante o efeito do álcool ou da droga, poderá realizar fatos inconvenientes, entendem os moralistas que, se ela, imprudentemente, quis correr o risco de fazê-las, pelo menos virtualmente desejou cometê-las. Há, portanto, culpabilidade.

Esse grau é obviamente maior se a pessoa bebe ou toma a droga "para ter coragem" de realizar algo que deseja fazer, mas sabe que, em situação normal de consciência, não ousaria sequer pensar.

Tudo isso é muito matizado, delicado e de difícil avaliação.

O princípio geral é, pois, que alguém pode ser responsabilizado pelo que faz ou deixa de fazer em casos de embriaguez, na medida em que pode ser responsável por ela.

Creio que o mesmo se aplicaria ao caso da hipnose. Se uma pessoa se deixa voluntariamente hipnotizar, sabendo que, durante o letargo, poderá praticar atos censuráveis, especialmente omissivos, é responsável por eles. Caso contrário, não.

Nos tratados de Moral, é recomendado que, quando a Medicina indica a hipnose como tratamento médico, sejam tomados determinados cuidados. Em primeiro lugar, conhecer bem o hipnotizador e ter a certeza de que ele não abusará de seu poder hipnótico sobre o paciente. Em segundo plano, requerer a presença de outra(s) pessoa(s) de confiança, que controle(m) tudo e evite(m) erros. Somente tomando esses cuidados é que se torna lícito o recurso à hipnose.

A questão reside em que nem sempre a pessoa se deixa hipnotizar porque quer. Geralmente, as pessoas passíveis de se deixar hipnotizar são as de personalidade mais fraca, de caráter mais débil, tendentes a aceitar passivamente influências externas. Por isso, e desde que comprovado que o indivíduo realmente estava sob ação hipnótica induzida por terceiros, sem concurso da própria vontade, acredito que ela não tem responsabilidade moral nem criminal. Estas são do indutor.

Em Marília, onde passei a minha mocidade, tinha um amigo que aprendeu a hipnotizar, e assisti muitas vezes à sua atuação. Realizava coisas incríveis com as pessoas, que faziam e deixavam de fazer. Mais, deixo para quem estudou mais profundamente o assunto.

[1] Mesmerizar, para os que não conhecem a expressão, significa hipnotizar e provém de Mesmer, hipnotista suíço-alemão que ficou célebre na passagem do século XVIII para o XIX.

2 comentários:

Alcino Lagares disse...

Quanto aos aspectos jurídicos referentes à culpabilidade, dolo, ou dolo eventual, estou de acordo.
Equivoca-se, porém, o autor quando se refere à personalidade e ao caráter das pessoas que se deixam hipnotizar: todas as pessoas inteligentes (excetuando-se aquelas que se encontrem em estado de embriaguez, sob efeito de drogas, ou durante surtos psicóticos)podem ser hipnotizadas.
Refiro-me, evidentemente, à hipnose realizada em bases científicas, a partir dos experimentos de Ivan Pavlov (Fisiologista, Prêmio Nobel de 1904)e não ao período místico de Anton Mesmer com sua teoria fluidista. Alcino Lagares, diretor do Instituto Mineiro de Hipnoterapia.

Alcino Lagares disse...

Quanto aos aspectos jurídicos referentes à culpabilidade, dolo, ou dolo eventual, estou de acordo.
Equivoca-se, porém, o autor quando se refere à personalidade e ao caráter das pessoas que se deixam hipnotizar: todas as pessoas inteligentes (excetuando-se aquelas que se encontrem em estado de embriaguez, sob efeito de drogas, ou durante surtos psicóticos)podem ser hipnotizadas.
Refiro-me, evidentemente, à hipnose realizada em bases científicas, a partir dos experimentos de Ivan Pavlov (Fisiologista, Prêmio Nobel de 1904)e não ao período místico de Anton Mesmer com sua teoria fluidista. Alcino Lagares, diretor do Instituto Mineiro de Hipnoterapia.

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