A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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14 de março de 2009

Entrevista: Questão Racial


Carta Forense - Como o senhor vê o racismo hoje no Brasil?

Nadir de Campos Júnior(*) - Primeiramente é preciso "desracializar" o debate sobre o racismo no Brasil. Partimos da premissa de que o último relatório de desenvolvimento humano da ONU demonstra claramente que há dois "Brasis", convivendo num contexto doutrinariamente denominado de "racismo cordial"- um branco e um negro - entre os quais se abisma um foco inescondível de desigualdade. Em outras palavras, assim como os corruptos que processamos perante o Judiciário não dão recibo da mal-versação da "res pública" e atos de improbidade que praticam, o racista, o preconceituoso ou o discriminador, assim também não se declaram, mas insistem em apontar que as reivindicações dos afrodescendentes nada mais significam que uma vã tentativa de racializar o debate e, por conseqüência, a sociedade brasileira, que, sem isso, se igualaria e conviveria de forma harmônica, nos termos propostos pelo legislador constituinte. Concluindo, o racismo brasileiro se manifesta da forma mais odiosa entre os países civilizados, porque deriva de dados científicos (relatório da Organização Internacional do Trabalho, divulgado em maio de 2.007, revela que o homem negro, com a mesma qualificação e nível educacional recebe um terço a menos do que o homem branco) e a elite dominante se nega a contribuir na formulação de políticas públicas que possam minimizar esta questão que não é exclusivamente da comunidade negra, mas da própria sociedade brasileira

CF - O senhor já foi vítima de racismo?

NCJ - Lamentavelmente já. Adquirindo um imóvel de classe média alta, na zona sul de São Paulo, fui "confundido" com funcionários do Edifício e impedido de adentrar no Condomínio e ter acesso ao meu próprio apartamento sob o argumento de que não era normal uma pessoa como eu ser proprietário de um imóvel tão luxuoso. Mesmo apresentando a Carteira de membro do Ministério Público, somente fui liberado após apresentar na portaria do prédio cópias do contrato particular de venda e compra, devidamente registrado em Cartório. A questão, levada ao Judiciário, foi julgada improcedente, tendo em vista que não teria sido demonstrado o "dolo específico" da síndica em exigir documentos especiais para meu ingresso no apartamento adquirido.

CF - Ainda hoje, são raros afrodescendentes nos quadros do Ministério Público. Na sua carreira o senhor teve algum tipo de discriminação?

NCJ -A raridade não é exclusiva da instituição do Ministério Público. Assim também é na Magistratura, no Exército, Marinha, Aeronáutica, Carreira Diplomática entre outros órgãos e poderes de Estado. Negros e negras em postos de autoridade pública chega a causar perplexidade na elite dominante. Quando me apresento de "vestes talares", ou seja, a beca por cima do terno, dentro do maior complexo Judiciário da América Latina (Fórum Criminal da Barra Funda em São Paulo), não vislumbro qualquer colorido de discriminação. Mas, de calça "jeans" e camiseta, ao adentrar nas agências bancárias da Avenida Paulista, inexplicavelmente as portas rolantes de segurança travam, independentemente de no bolso de minha calça haver somente documentos pessoais. Então, concluo que ser Promotor de Justiça, por si só, não se me conferem os direitos de cidadania.

CF - A cor da pele ainda é um obstáculo na vida das pessoas?

NCJ -O dia 21 de março de 1.960, vivido em Shaperville, subúrbio de Jonesburgo, capital da África do Sul, em que 20 mil negros protestavam contra a "Lei do Passe", que os obrigavam a carregar cartões que especificassem o local onde podiam circular, onde mesmo diante de uma manifestação pacífica, se legitimou a atuação policial com a morte de 69 pessoas, denominado "Massacre de Shaperville", não se distingue em nada com o "Massacre do Eldorado dos Carajás", no Pará, ou o "Massacre do Carandirú", em São Paulo, entre outras ações militares precipitadas que colocaram o Brasil no banco dos réus perante a Organização dos Estados Americanos. O que estes eventos tem em comum? Atos atentatórios contra a dignidade do homem, na sua maioria, homens negros.

CF - O senhor veio de uma família humilde e mesmo assim conseguiu fazer a faculdade de Direito e entrar no concorrido concurso para o Ministério Público Paulista. Diante disto, gostaria de saber sua opinião sobre as cotas raciais nas faculdades e concursos?

NCJ -O fato de ter alcançado a honra de pertencer à gloriosa instituição do Ministério Público pelo aspecto meritório, não me desonera de enfrentar de forma serena a questão das cotas, seja no ensino, seja no serviço público. Relembro que embora questionado por alguns, sua Excelência o ex-Presidente e hoje Presidente do Senado Federal José Sarney, foi o responsável, no ano do centenário da abolição da escravatura (1988), pela criação da Fundação Palmares, destinada a dar um suporte institucional às reivindicações da comunidade afrodescendente, para no ano seguinte, sancionar a lei 7.716/89, que passou a tratar atos de discriminação (até então como meras contravenções), como crimes de racismo. Apresentou, em seguida, projeto de cotas, aprovado no Senado implantando o sistema nas universidades federais. Apesar dos desvios e dificuldades da implementação do sistema, entendo que o princípio da igualdade, sob o aspecto material, substantivo, somente pode ser alcançado por este caminho. A questão não depende, portanto, de reforma constitucional para equacionar o debate. É necessário, por outro lado, o estabelecimento de políticas públicas afirmativas equilibradas entre a questão racial e o mérito dos candidatos, que evitem a cruel realidade de vislumbrarmos a chegada do privilegiado pelo sistema atual de carro importado no serviço público e nas universidades públicas, reveladoras da injustiça social.

CF - Qual o seu posicionamento acerca daqueles que afirmam que o problema da população negra reside exclusivamente na questão social?

NCJ -A questão racial não é exclusivamente social, nem econômica. O Brasil é uma democracia racial que convive diante de enormes preconceitos. Se é verdade que para alguns sociólogos de plantão, a exclusão dos negros e da comunidade negra coincide com a dos pobres, elas não podem ser confundidas. Como já admitia sua Excelência, José Sarney, existe uma constatação irrefutável: "Os negros, entre os pobres, são os mais pobres; entre os que não conseguem o acesso à educação, a maioria; entre os doentes, os mais graves" (in, Revista Afirmativa Plural, pg. 30). Assim, a ascensão social do negro é um dos grandes desafios do Brasil. Enquanto o negro não tiver à sua disposição instrumentos de soerguimento social, o Brasil não será um país fraterno, justo e materialmente igualitário para seus cidadãos.

CF - Sérgio Adorno, professor titular de sociologia da USP, afirma que em suas pesquisas verificou que os negros são discriminados pela própria justiça, onde recebem penas proporcionalmente maiores que os brancos, ainda que com os mesmos delitos e tem seus direitos fundamentais negligenciados. Como promotor de justiça e negro, qual o seu posicionamento acerca deste dado científico?

NCJ -Entendo que a premissa é real, mas a conclusão científica não. Em outras palavras, não há como questionar dados científicos. Entretanto, a discriminação suportada pela comunidade negra não deriva da justiça, mas dos membros que a compõe. Assim, nos cabe criar instrumentos de desfazimento das injustiças verificadas no tratamento entre os jurisdicionados. Neste sentido, forçoso reconhecer a importância da Lei Complementar Paulista, da lavra do Excelentíssimo Procurador-Geral de Justiça, Dr. Fernando Grella Vieira, extinguindo o mero cargo de Assessor de Direitos Humanos para criar a Promotoria de Direitos Humanos, conferindo funções de natureza executiva aos Promotores de Justiça, mormente na área da inclusão social.

CF - O senhor se lançou para disputar em lista tríplice, a indicação ao cargo de Membro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Seria o primeiro negro a compor este órgão, caso aprovado pela classe e indicado pelo Conselho Nacional de Procuradores Gerais de Justiça. Quais seus principais compromissos para que a classe e posteriormente o referido órgão colegiado possam lhe confiar o voto e respectiva indicação?

NCJ - O Conselho Nacional do Ministério Público é um órgão composto por 14 membros dentre os quais 3 dos Ministérios Públicos Estaduais (Art. 130-A, CF, nos termos da EC n. 45/2004). Somos aproximadamente 14.000 membros do Ministério Público, entre os quais, 1.873 são paulistas, o que, pelo critério objetivo da representatividade, nos legitima a pleitear, como Promotor de Justiça, assento perante o colendo órgão colegiado. No primeiro turno, perante a classe, nossos compromissos são os de garantir o respeito às diferenças regionais e às peculiaridades de cada um dos Ministérios Públicos, nos processos normativos e decisórios do CNMP e pugnar pela implantação de um sistema de dados, de acesso público, que demonstre o grandioso trabalho dos Promotores e Procuradores de Justiça em favor da sociedade brasileira; no segundo turno, perante os ínclitos Procuradores Gerais de Justiça, nossos compromissos são de zelar pela efetiva autonomia dos Ministérios Públicos Estaduais e pela defesa intransigente das prerrogativas funcionais de seus membros, bem como, praticar a interlocução permanente com os movimentos sociais, a fim de melhor conhecer as suas necessidades e dar início a uma campanha de conscientização da população sobre as graves tarefas afetas ao Ministério Público.

CF - Por derradeiro, para o senhor, qual o significado político-institucional da eleição, nomeação e posse do negro Barack Obama para a política externa, principalmente em relação à América Latina?

NCJ- Penso sinceramente que no programa de governo do competente Presidente Norte-Americano não se destaca papel de maior relevo na política externa em relação à América Latina. É que o que o destacou dos demais pré-candidatos dentro do partido democrata foi sua disposição prioritária de por fim à guerra contra o Iraque, o fim dos abusos da prisão de Guatânamo, o estabelecimento de uma política mais firme para ao menos minimizar os conflitos entre israelenses e palestinos, bem como, uma maior aproximação com Moscou visando neutralizar o suposto poderio bélico iraniano. Não se nega que o democrata americano convenceu, em muito, os eleitores americanos, por suas exposições claras e precisas sobre os novos rumos a serem dados à economia americana, hoje em estado de flagelo. É um "show-man"do marketing mundial, porque são de suas idéias democráticas que o mundo globalizado depende. Assim, aos 45 anos foi capa da revista "Time", passando a receber o apoio de Oprah Winfrey e seu mais novo livro "A origem dos meus sonhos", ficou no topo do ranking da lista de Best Sellers do jornal "The New York Times". Ganhou também o Grammy, por melhor gravação falada e a elite, bem como, a juventude americana sentiu confiança no candidato, circunstancialmente negro, de nome emblemático, porque, embora formado em Direito pela Harvard Law Reviev, através do sistema de cotas, mostrou-se político hábil iniciando sua carreira como Senador pelo Estado de Illlinóis, defendeu o resgate do sonho americano através de mensagens religiosas reafirmando sempre que "Sim, nós podemos". Para a América Latina, entretanto, reconheço que o Partido Democrata se esforçou em convidar através da Embaixada Americana, alguns sociólogos e empresários para a posse do novo Presidente. Entre os convidados José Vicente, Pró-Reitor da Universidade "Zumbi dos Palmares", Diretor da Afrobrás, entidade de defesa dos interesses dos afrodescendentes, o que sinaliza para uma perspectiva de um olhar futuro para as condições da comunidade negra da America-latina.

(*) (foto), Promotor de Justiça/SP, Diretor da APMP - Associação Paulista do Ministério Público e Professor de Processo Penal - Curso Preparatório para Carreiras Jurídicas - FMB.

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Paradigma

O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)