Na vida prática observa-se que as teses defensivas em plenário sempre cativam pelo menos um jurado, por mais culpado que seja o réu. Assim, um dos juízes de fato entende que o acusado agiu em legítima defesa real; o outro, em legítima defesa putativa; o outro acredita na negativa de autoria; e o outro perdoa o réu. Pela quesitação tradicional, sem a concentração atual, a hipótese descrita resulta em condenação por 6 a 1, porque cada alegação é objeto de perguntas específicas. Com o quesito concentrado, exatamente o mesmo caso gera absolvição por 4 a 3.
Os casos de pluralidade de teses defensivas, regra dos julgamentos pelo Júri, resultarão em absolvição. No nosso sentir, o número de réus absolvidos pelo menos triplicará sob o domínio do novo regime.
É que o sistema tradicional brasileiro, estribado em séculos de vivência do Direito latino, exigia do jurado o reconhecimento de cada um dos requisitos da excludente alegada (ex.: O réu praticou o fato em defesa de sua pessoa? Defendeu-se o réu de uma agressão atual? Defendeu-se o réu de uma agressão iminente? Os meios empregados na repulsa eram necessários? O réu usou moderadamente desses meios? O réu excedeu dolosamente os limites da legítima defesa? O réu excedeu culposamente os limites da legítima defesa?). Com isto, o jurado era informado pelo Direito, pela Lógica e por sua própria consciência. Era-lhe possível votar contra a prova dos autos, mais isto exigiria que aviltasse sua razão e seus preceitos éticos e morais. Na verdade, a falta de motivação do voto era apenas formal, porque nos procedimentos mentais internos a decisão passava forçosamente por um poderoso filtro lógico, moral e jurídico.
O novo sistema procura liberar o jurado das “amarras”. Não se lhe apresentam mais as questões efetivas de Direito e de consciência. Fora de dúvida que é muito mais provável absolvição indevida, nestas circunstâncias.
A propósito, recorde-se que o quesito conglobante da legítima defesa (O réu agiu em legítima defesa?), que trazia o mesmo grave defeito, já foi objeto de conhecida proposta doutrinária na década de 90. Tal forma de quesitar foi imediatamente rechaçada por nossos Tribunais, que anularam quase todos os julgamentos onde o quesito único foi apresentado aos jurados, em função da “confusão e da perplexidade gerada entre os jurados, ante a complexidade da questão” (JTJ 14/259, 203/297; RT 686/323 etc.)
Agora, a Reforma volta à carga, não só juntando todos os quesitos da legítima defesa como embolando todas as teses defensivas. Assim, são tratadas no mesmo instante as teses da piedade, da vítima que merecia morrer, dos filhos que precisam do pai solto, das legítimas defesas real e imaginária, dos estados de necessidade real e putativo, da simpatia do réu, etc.
É impossível imaginar melhor meio de absolver um culpado que o quesito conglobante, embora ele em nada beneficie o inocente.
Impõe-se a nova lei ao país ao arrepio de nossas tradições, da reiterada e unânime manifestação dos nossos Tribunais e da segurança jurídica.
A reforma suscita ainda a antiga censura, que todos julgavam já sepultada, cercando violentamente o discurso da acusação. A maior perplexidade é causada pela proibição imposta quanto a referências à sentença de pronúncia em plenário, ao mesmo tempo em que a lei exige que a acusação se baseie exclusivamente na mesma pronúncia. Como sustentar a acusação sem apontar o seu fundamento?
A redação da Reforma também propala a idéia de que os órgãos de persecução penal criminal pautam normalmente suas atividades pela ilegalidade e pelo abuso. Sugere o texto, por exemplo, que a denúncia é uma peça que deve ser em princípio rejeitada. Diz que as provas colhidas no inquérito policial são imprestáveis. Como confiar numa acusação emanada de tais vilões?
Acrescente-se que todos os procedimentos criminais deverão deslocar o interrogatório para o último ato na audiência, depois de colhidas todas as provas, sob a atenta observação do acusado.
A justificativa alegada para o deslocamento do interrogatório é o direito do acusado de conhecer a acusação que lhe é imputada. Ocorre que a acusação já vem fixada desde o primeiro momento processual, na denúncia, não podendo ser modificada durante o procedimento.
Desta maneira, o objetivo do deslocamento passa a ser permitir que o réu ofereça no final a versão dos fatos que lhe é mais conveniente, conforme a prova colhida, como se o processo fosse um jogo de pôquer viciado, onde um dos participantes tem o direito de ver antecipadamente as cartas dos demais, para poder blefar e apostar com maior conforto e segurança.
Pior. Este novo procedimento legal que enaltece a burla e o blefe passa a ser ensinado regularmente em nossas academias de Direito, como coisa boa e elogiável.
Depois disso, como um pai poderá exigir que o filho lhe diga a verdade?
O momento é de reflexão.
Muita!" (destacamos)