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22 de outubro de 2008

Quesitação no Júri



Art. 483, § 2°, do CPP – redação conferida pela Lei n° 11.689/2008 – Quesito ‘O Jurado Absolve o réu ?’ – Inconstitucionalidade de inserção obrigatória em qualquer hipótese – Necessidade de Interpretação Conforme a Constituição, inclusive, no controle Difuso de Constitucionalidade – Adequação a preceitos constitucionais.

A Lei n° 11.689/2008, com vigência desde 09 de agosto de 2.008, promoveu profundas mudanças no procedimento das ações penais relativas aos crimes dolosos contra a vida e os conexos. Dentre elas, de extrema relevância, aquela referente à redação conferida ao art. 483, do Diploma Processual Penal: “Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre: I – a materialidade do fato; II – a autoria ou participação; III – se o acusado deve ser absolvido; IV – se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa; V – Se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação. § 1° (...); § 2° - Respondidos afirmativamente por mais de 03 (três) jurados os quesitos relativos aos incisos I e II do caput deste artigo será formulado quesito com a seguinte redação: O jurado absolve o acusado? (...)”.

Inicialmente, impende destacar que o legislador ordinário, neste preceito legal, em árdua tarefa, pretendeu simplificar a quesitação durante a votação submetida aos cidadãos jurados, fonte de tantas e reiteradas nulidades no curso de julgamento. Todavia, a dificultosa missão acabou, como esperado e em razão de diversas lacunas, gerando polêmicas no tocante a sua aplicação. E não são poucas. Persistem dúvidas, dentre outras, no concernente à quesitação de causas de isenção de pena, v.g., a inimputabilidade, expressamente prevista no texto revogado (CPP, art. 484, III); em relação ao excesso doloso e culposo nas excludentes de ilicitude; no acolhimento de fundamento extra-jurídico na absolvição genérica do acusado.

No entanto, reclama detida análise a inserção obrigatória e imperativa do quesito alusivo ao § 2°, do aludido artigo em testilha.

Referido dispositivo impõe reflexões precedentes, diante das inúmeras conseqüências de sua colocação no questionário respectivo.

Deste modo, forçoso enfrentar, preambularmente, questão referente à permissão ou não alusiva ao acolhimento de razão, motivo ou fundamento extra-legal para absolvição.

Neste passo, sob a ótica de todo o plexo jurídico brasileiro, compartilho do entendimento no sentido de ser impossível tolerar argumento ajurídico para lastrear veredictos emanados pelo Conselho de Sentença, pese embora julguem pelo sistema da íntima convicção, porquanto simbolizam, notadamente por seus efeitos, provimentos jurisdicionais e merecem tratamento semelhante.

Em busca da resolução do tema, poder-se-ia até traçar paralelismo com outra controvérsia doutrinária e jurisprudencial relativa à existência de causa supralegal de inexigibilidade de conduta diversa. Todavia, malgrado também a repute juridicamente inviável[1], aqueles que a admitem sustentam sua aplicação, pois baseada em verdadeiro princípio geral e básico da culpabilidade, isto é, a não-exigibilidade, a motivação normal, constituindo, ainda, acatamento ao pensamento finalista, qual seja, não punir o inevitável. Portanto, mostrar-se-ia impossível efetivar a comparação, na medida em que a mencionada causa supralegal assenta-se, visivelmente, consoante seus defensores, em premissa jurídica, diversamente do que ocorreria na admissão de fundamento extra-jurídico como base de absolvição.

Dessa maneira, inicia a cristalina comprovação da vedação de admissão de motivo extra-legal como fundamento de absolvição, o próprio texto Constitucional, em decorrência do Princípio da legalidade estrita (CF, art. 5°, II), conseqüentemente, do contraditório (LV) e, sobretudo, do duplo grau de jurisdição, com base na visão lógico-sistemática da Legislação Processual Penal.

Sob este último enfoque, basta, para tanto, verificar a redação dos artigos 386 e 593, III, d, da Lei Penal Adjetiva. Nota-se, quanto ao primeiro, a hialina inexistência, dentre seus sete incisos, de hipótese correspondente a fundamento extra-legal de absolvição, v.g., clemência. Dessa maneira, não havendo previsão de enquadramento jurídico de sobredita situação, torna-se impossível sua acolhida e reconhecimento, posto que feriria a legalidade. De outro tanto, tornaria inviável a devolução deste fundamento – até porque, na forma como proposta pelo legislador, de natureza desconhecida – à Corte de Apelação e, desse modo, restaria afrontada o duplo grau de jurisdição e o sistema processual penal.

Nem mesmo as causas legais de extinção da punibilidade, quais sejam, perdão judicial (hipótese na qual o Juiz condena, mas extingue a punibilidade), graça, anistia, indulto – indulgência do Poder Executivo, podem se prestar a validar interpretação de acolhimento de clemência jurisdicional, porquanto todas estão devidamente previstas pelo ordenamento jurídico pátrio, as últimas, inclusive, pela Constituição Federal.

Por conseguinte, sob qualquer ótica que se analise, entende-se inadmissível admitir a existência de motivação extra-jurídica como base e fundamento para subsidiar tese defensiva a ser resolvida no quesito citado no artigo em comento.

Superada a viabilidade e legalidade de tolerar o argumento extra-legal, outros problemas, então, surgem.

Primeiro deles. Revela-se, impossível submeter tal quesito à votação, nos julgamentos em que não são sustentadas teses defensivas atinentes às dirimentes.

De efeito, não se mostra razoável impor indagação aos jurados – se pretendem absolver o réu – em casos nos quais a defesa admitiu a autoria, mas lhes propugnou o reconhecimento de homicídio privilegiado e, subsidiariamente, a desclassificação, mediante o afastamento das qualificadoras. Igualmente, nos feitos em que se sustentou a desclassificação, seja ela própria ou imprópria. E, assim, sucessivamente.

Isso porque, não obstante significar notória contrariedade à tese do próprio réu e de sua defesa, quebraria completamente a paridade de forças entre as partes (Acusação e Defesa) e, mormente, imporia a dispensa de tratamento extremamente privilegiado à última, em cristalina afronta ao princípio do contraditório.

Desta feita, elidida hipótese de permissão de motivação não-legal, sobeja como únicos fundamentos para indagação neste quesito, as excludentes de ilicitude da legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito.

Muito pior se nota nos julgamentos em que a defesa invoca duas excludentes de ilicitude a serem apreciadas pelos jurados no malsinado e citado quesito. Convêm relembrar que, sob a vigência dos dispositivos anteriores, era imperioso o desdobramento para cada sustentação. Atualmente, ao menos em interpretação literal, inexiste tal previsão.

Assim, veja-se a absurda injustiça e absoluta desconsideração da vontade majoritária dos jurados.

Suponha-se que, dos sete jurados, apenas dois reconhecem a legítima defesa própria e os demais discordam, enquanto dois outros, diversos dos primeiros, admitem a legítima defesa de terceiro e os restantes a afastam. Indagados sob cada uma das teses isoladamente, restariam elididas ambas as aduções da defesa, mas em conjunto, como hodiernamente determinado pelo legislador ordinário, acabariam, indevidamente, reconhecidas.

Tal obviedade de raciocínio implica, evidentemente, na imprescindibilidade de se formular indagações expressas e respectivas das teses, mediante o desdobramento – não para cada requisito, como no sistema anterior – notadamente pois não se pode conceber julgamentos mediante presunções dos fundamentos acolhidos. Isso, mais uma vez, simbolizaria ataque à legalidade, o contraditório e o próprio duplo grau de jurisdição.

Aliás, exatamente por esta razão, todas as teses de acusação são articuladas, mormente para o exercício da ampla e, no Júri, da plenitude de defesa do acusado. A despeito do Jurado firmar sua decisão mediante o princípio da íntima convicção, o resultado de seu julgamento é plenamente conhecido, pois encerra a declinação e indicação do preceito legal em que se funda. Se foi o réu; se foi homicídio; com dolo direto ou eventual; se é qualificado, etc. O jurado vota, então, todas as questões fáticas correspondentes aos dispositivos legais.

As assertivas retromencionadas corroboram, inclusive, a impossibilidade de acolhimento de fundamento extra-jurídico. Ademais, reforçam a necessidade de se atender ao sistema recursal processual penal, visto que possibilita o conhecimento, pelo Tribunal de Apelação, da indicação de suas decisões, visando, conseqüentemente, aquilatar eventual contradição e afronta ao quadro probatório carreado aos autos.

Caso contrário, fosse diversa a intenção do Legislador, seria suficiente a indagação ‘O réu é culpado ou inocente?’ ou ‘O Jurado condena ou absolve o réu?’, hipóteses nas quais não se encerraria a indicação das motivações dos jurados.

Por oportuno, anote-se que a literalidade legal fere, ademais, o próprio princípio da plenitude de defesa, porque impede a votação de quesito alusivo ao excesso culposo, já que o excesso doloso poder-se-ia resolver no afastamento da legítima defesa, em virtude da ausência de requisito cumulativo, qual seja, moderação.

Nem se permite, a esta altura, invocar a Constitucional Soberania dos Veredictos, haja vista que sabidamente mitigada por outros institutos da Legislação Processual Penal, quais sejam, a anulação do Julgamento em grau de Apelação por julgamento contrário à prova dos autos e, inclusive, a possibilidade de Revisão Criminal.

Desse modo, afrontados princípios constitucionais, merece o quesito em análise sua adequação, aplicando-se-o, portanto, conforme a ordem Constitucional.

CONCLUSÃO

Por conseguinte, descartada possibilidade jurídica de acolhimento de argumento extra-legal, revela-se inconstitucional a obrigatoriedade da quesitação da indagação em apreço, demandando, então, inserção no questionário somente na oportunidade em que a defesa sustentar excludentes de ilicitudes.

Consigna-se, aqui, a impossibilidade de prever a indagação genérica no questionário diante da sustentação da negativa de autoria pela defesa, porque traduziria indevida repetição de argüição dos jurados, em desprestígio ao princípio do contraditório.

Então, nos casos de alegação das dirimentes, deve o Magistrado, Presidente da Sessão, explicitar aos Jurados e desdobrar o quesito, formulando outro(s) concernente(s) à respectiva causa de antijuridicidade.

Na exemplificação supracitada, após os quesitos respectivos de materialidade e autoria, restaria inserida a indagação: ‘3° - O Jurado Absolve o réu?’ e, na seqüência, ‘4° - O réu assim agiu, repelindo injusta agressão dirigida a sua pessoa, atual ou iminente, usando moderadamente dos meios necessários?’ ‘5° - O réu assim agiu, repelindo injusta agressão dirigida a terceira pessoa, atual ou iminente, usando moderadamente dos meios necessários?’

Poder-se-ia, desde já, antever resultados nos quais os jurados votem ‘sim’ no terceiro quesito e ‘não’ nos subseqüentes. Tal situação resolver-se-ia com a repetição das votações em decorrência da notória contradição, na forma do art. 490, do Diploma Processual Penal.

Destarte, o impasse dissolve-se mediante a interpretação do mencionado dispositivo à luz e conforme à Constituição Federal.

Na prática, sob tais fundamentos, no momento de leitura dos quesitos pelo Magistrado em plenário (CPP, 484, caput), a acusação deve impugnar a inserção indevida do quesito em tela, cuja invocação deve ser resolvida por aquele. Mantido o questionamento, resta, se o caso, a interposição de Apelo pelo Ministério Público, com o devido prequestionamento da questão, para fins de Recurso Especial e ou Extraordinário.

Por Rafael Abujamra, Promotor de Justiça em Avaré/SP


[1] Vide TJSP, 4ª Câmara Criminal, Ap. n° 76.681-3, Rel. Dante Busana, São Bernardo do Campo/SP.
Fonte: Site da Associação Paulista do Ministério Público, acessado em 22/10/2008

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