A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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5 de outubro de 2008

Chaïm Perelman e a nova retórica


1. APONTAMENTOS INICIAIS

Professor de lógica da Universidade Livre de Bruxelas, polonês naturalizado na Bélgica, Chaïm Perelman, é considerado um dos atuais expoentes da Filosofia do Direito. Sua vasta obra trouxe contribuições importantes no tocante à metodologia do Direito, onde, através da Teoria da Argumentação, propõe uma aplicação prática dos juízos de valores.

Estabeleceram-se então inúmeras discussões teóricas acerca de sua Nova Retórica, dando-lhe o status de novo paradigma do Direito. Por isso a importância de sua obra para a modernidade. Para o autor, o raciocínio valorativo viveu marginalizado de toda filosofia ocidental pela proeminência do raciocínio cartesiano (lógico-dedutivo), admitido como o único realmente científico.

É como expõe:

"A concepção positivista tinha como conseqüências inevitáveis restringir o papel da lógica, dos métodos científicos e da razão a problemas de conhecimento puramente teóricos, negando a possibilidade de um uso prático da razão [...]."[1]

Porém, como se sabe, as relações humanas não se sujeitam ao argumento da indiscutibilidade, por serem essencialmente subjetivas, não podendo sempre ser comprovadas.

É notório que a conduta prática comporta mais de um resultado ou significado conforme sua aceitação por uma ou outra escala de valores. Por isso, a "melhor" conduta será, segundo o autor, aquela que se apresente como a mais razoável, mediante uma justificativa convincente.

Utiliza-se para o melhor entendimento das relações humanas (onde inclui-se o Direito) o raciocínio dialético, privilegiando a praxis em detrimento de uma solução imposta previamente. A arte da discussão é, portanto, o melhor método para a solução de problemas práticos que envolvem valores, conforme Perelman:

"A dialética, a arte da discussão, se mostra o método apropriado à solução dos problemas práticos, os que concernem aos fins da ação, que envolvem valores; é no exame de tais questões que é empregada nos diálogos socráticos, e esta razão da estima que Platão tem por ela [...]." [2]

2. O PROBLEMA DA JUSTIÇA

O problema da justiça constitui o cerne de toda a teoria de Perelman. Através da tentativa de definir justiça pela lógica formal ocorre uma ruptura com o pensamento metafísico clássico da formação do autor, o que proporcionou a elaboração da base da Teoria da Argumentação.

O "antigo" Perelman acreditava que através da igualdade formal, estabelecidas as regras sobre a sua aplicação, poderíamos analisar com certeza e indiscutibilidade o conceito científico de justiça. Baseado no pensamento positivista, concluiu o autor que só caberia à Filosofia do Direito conhecer a igualdade formal através da aplicação criteriosa do procedimento legal.

Após um intenso estudo, o autor rompe com o pensamento positivista-kelseniana para entender o ordenamento jurídico sobre um aspecto valorativo. Como os valores são por natureza arbitrários, nenhum sistema, inclusive o cartesiano, poderia ser considerado inteiramente lógico. Seria impossível, portanto, eliminar toda a arbitrariedade do sistema jurídico como queria Kelsen quando apresenta a sua norma fundamental. Com isso, Chaïm Perelman nos apresenta uma crise epistemológica na Teoria Pura do Direito. Segundo ele, somente o acordo sobre os valores é que nos permite justificar as regras, conforme:

"O que parece justificar o ponto de vista positivista é que, graças à experiência e à demonstração, pode-se estabelecer a verdade de certos fatos e de certas proposições, lógica, matemáticas, enquanto os juízos de valor permanecem controvertidos, sem que seja possível encontrar um método racional que permita estabelecer um acordo a respeito deles [...]." [3]

E, ainda:

"De fato, se nos ativermos ao método positivista, a idéia de uma escolha, de uma decisão, de uma solução razoável, que implique a possibilidade do uso prático da razão, deverá ser excluída. Mas mesmo que fôssemos além da abordagem positivista, não bastava desejar uma concepção mais ampla da razão: cumpria também elaborar uma metodologia que permitisse pô-la em prática, elaborando uma lógica dos juízos de valor que não os fizesse depender do arbítrio de cada um [...]." [4]

De acordo com o autor, nem o fundamento de justiça seria absoluto e passível de ser fundamentado unicamente na razão lógica. Ele é relativo, porque é fruto da vontade de quem o produz.

Neste sentido, Perelman distingui três elementos na justiça: o valor que a fundamenta, a regra que a enuncia e o ato que a realiza. Como sabemos, apenas o aspecto concernente ao valor seria arbitrário, conforme explica Lacombe:

"Os dois último elementos, os menos importantes aliás, como expões Perelman, são os únicos que podemos submeter a exigências racionais: podemos exigir do ato que seja regular e que trate da mesma forma os seres que fazem parte da mesma categoria essencial; podemos pedir que a regra seja justificada e que decorra logicamente do sistema normativo adotado. Quanto ao valor que fundamenta o sistema normativo, não o podemos submeter a nenhum critério racional, ele é perfeitamente arbitrário e logicamente indeterminado. Com efeito, embora qualquer valor possa servir de fundamento para um sistema de justiça, esse valor, em si mesmo, não é justo [...]." [5]

3. A NOVA RETÓRICA

A Nova Retórica, segundo o autor, é "o estudo das técnicas discursivas que visam a provocar ou a intensificar a adesão de certo auditório às teses apresentadas" [6]. É uma retomada do termo elaborados pelos Antigos filósofos:

"A Retórica, que foi elaborada pelos Antigos e à qual foram consagradas as obras de Aristóteles, Cícero e Quintiliano, é uma disciplina que, após ter sido considerada o coroamento da educação greco-romana, degenerou no século XVI, quando foi reduzida ao estudo das figuras de estilo, e depois desapareceu inteiramente dos programas de ensino secundário. Esta retórica foi definida por Aristóteles como a arte de procurar, em qualquer situação, os meios de persuasão disponíveis. Prolongando e desenvolvendo a definição de Aristóteles, diremos que seu objeto é o estudo das técnicas discursivas que visam a provocar ou aumentar a adesão das mentes às teses apresentadas a seu assentimento [...]." [7]

Seguindo, podemos afirmar que a teoria de Perelman é suportada por pilares dogmas por ele descritos. Vejamos.

A retórica procura persuadir por meio do discurso. Com esse primeiro enunciado o autor nos coloca a impossibilidade de uma discussão retórica dar-se quando recorrermos à experiência para obter adesão à uma informação, portanto, não existe retórica quando o diálogo baseia-se apenas no empírico. Segundo o autor, é insuficiente a utilização da experiência para um diálogo sem um prévio acordo sobre o significado das palavras utilizadas no enunciado.

A demonstração e as relações da lógica formal com a retórica. Só existirá uma conclusão verdadeira, se, no processo silogístico, forem reconhecidas como verdadeiras as premissas utilizadas. A prova demonstrativa, como Perelman nos relata, é convincente e persuasiva, porém deve-se admitir como verdadeiros os antecedentes desta.

É como dispõe o aludido autor:

"Descartes e os racionalistas puderam deixar de lado a retórica na medida em que a verdade das premissas era garantida pela evidência, resultante do fato de se referirem a idéias claras e distintas, a respeito das quais nenhuma discussão era possível. Pressupondo a evidência do ponto de partida, os racionalistas desinteressaram-se de todos os problemas levantados pelo manejo de uma linguagem. Mas, assim que uma palavra pode ser tomada em vários sentidos, assim que se trata de aclarar uma noção vaga ou confusa, surge um problema de escolha e decisão, que a lógica formal é incapaz de resolver; cumpre fornecer as razões da escolha para obter a adesão à solução proposta, e o estudo dos argumentos depende da retórica [...]." [8]

A adesão a uma tese pode ter intensidade variável. Podemos afirmar isto porque, no discurso retórico, tratamos com valores e não com verdades. Não existem dogmas a serem tratados, só existem afirmações relativas.

Distinção entre a retórica e lógica formal. A retórica cinge-se da lógica formal por tratar com a adesão e não com verdades absolutas. As verdades, segundo Perelman, "são impessoais, e o fato de serem, ou não, reconhecidas nada muda em seu estatuto. Mas a adesão é sempre a adesão de um ou mais espíritos aos quais nos dirigimos, ou seja, um auditório." [9]

4. RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO

Voltando aos ensinamentos de Viehweg, Chaïm Perelman estabelece pontos congruentes entre a Nova Retórica e a Teoria da Argumentação através da tópica, como informa a doutrina de Margarida Lacombe [10].

Como se sabe, ambos os paradigmas tem como premissas iniciais raciocínios prováveis. É uma discussão de teses, partindo de argumentos não necessariamente verdadeiros, que visa a adesão de determinado auditório. Nota-se que, como exposto anteriormente, esta adesão pode variar em sua intensidade.

Portanto, tendo os pilares iniciais de uma argumentação não dogmatizados, como requer o sistema cartesiano, podemos nos utilizar dos acordos implícitos ou prévios, como é o caso da tópica na utilização dos topoi.

Como é colocado na obra de Perelman, o orador utiliza-se dos topois como premissas iniciais incidindo sobre o real, sobre o preferível ou sobre os lugares do preferível.

Os fatos, as verdades e as presunções são exemplos de topois que incidem sobre a realidade, conforme informa Lacombe:

"Perelman qualifica os argumentos que se fundamentam no real e os que se fundamentam sobre a estrutura do real como argumentos quase-lógicos e, portanto, de grande força persuasiva. Os argumentos que se fundamentam no real ou sobre o real, consistem naqueles que se utilizam das relações de sucessão ou as de coexistência. As relações de sucessão, por exemplo, concernem a acontecimentos que seguem no tempo como a causa e o efeito, e que nos permitem investigar a causa a partir dos efeitos ou apreciar a causa pelos efeito (argumento pragmático). Para o utilitarismo, seria o argumento pelas conseqüências e para o existencialismo, a realização da pessoa através dos seus atos [...]." [11]

São exemplos de topois que incidem sobre o preferível, os valores e as hierarquias, como expõe Lacombe em sua doutrina:

"Diferentemente dos juízos de realidade, sujeitos à demonstração, os juízos de valor são controversos [...]. [...] Os valores universais como o justo e o belo, por exemplo, pela sua indeterminação, são, em geral, capazes de promover um primeiro acordo mas à medida que as questões se particularizam em função de realidades concretas, os desacordos aparecem e o esforço argumentativo torna-se maior." [12]

Aqueles incidentes sobre o lugar do preferível, como nos bem relata Lacombe em sua obra, ocorre no caso de se dar preferência à um argumento em detrimento do outro, porém, sem retirar a validade do não utilizado.

É mister informar que Perelman, em sua obra, nos adverte que se utilizarmos premissas baseadas no real, como é o caso de verdade e fatos constituídos por sua objetividade, estaremos diante de argumentos dificilmente recusados pelo auditório universal. Porém, o debate ganha em importância, quando o seu orador desafia fatos baseados em valores, que não seriam facilmente comprovados pelo empiricismo.

NOTAS
1.PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.136.
2.PERELMAN, Chaïm. Op. Cit., p.139.
3.PERELMAN, Chaïm. Op. Cit., p.136.
4.PERELMAN, Chaïm. Op. Cit., p.137.
5.LACOMBE, Margarida. Op. Cit., p. 205.
6.PERELMAN, Chaïm. Op. Cit., p.141.
7.PERELMAN, Chaïm. Op. Cit., p.137.
8.PERELMAN, Chaïm. Op. Cit., p.141.
9.PERELMAN, Chaïm. Op. Cit., p.143.
10. LACOMBE, Margarida. Op. Cit., p. 265
11.LACOMBE, Margarida. Op. Cit., p. 247.
12.LACOMBE, Margarida. Op. Cit., pp. 246 e 247.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência - Introdução ao Jogo e a Suas Regras. São Paulo: Loyola, 2000.
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Lições de filosofia do Direito. São Paulo: Ícone. 1995.
CAMARGO, Margarida M. Lacombe. Hermenêutica e Argumentação. Uma Contribuição ao estudo do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2ª Edição. 2001.
COELHO, Fábio Ulhoa. Para Entender Kelsen. São Paulo: Max Limonad. 2000.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. 1999.
GOMES, Alexandre Travessoni. O Fundamento de Validade do Direito - Kant e Kelsen. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 6a, Edição.. 2000.
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro. 1985.
PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. São Paulo: Martins Fontes. 2000.
VIEHWEG, Theodore. Tópica e Jurisprudência. Brasília: Universidade de Brasília., 1979.

RUSSO, Diogo de Assis. Chaïm Perelman e a nova retórica. Disponível em http://www.lfg.com.br. 03 de outubro de 2008.

Um comentário:

Marlene Furtado disse...

Sem sombra de dúvidas, como representante da sociedade a Promtoria de Justiça na figura do Promotor, é o agente mais importante para construção da cidadania. E o País só pode se considerar grande quando oferece recursos para criar em cada um dos seus nascidos um cidadão representativo de sua sociedade (MARLENE RAMALHO FURTADO)

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