A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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6 de maio de 2008

A Marcha da Maconha e o direito à livre expressão


Neste último fim de semana deveria ocorrer em algumas capitais do país e em mais de 200 cidades do mundo a auto-intitulada "Marcha da Maconha", evento consistente em manifestação pública de setores sociais que defendem a descriminalização do uso desta erva entorpecente.

Membros de Ministérios Públicos Estaduais da maior parte destas respectivas capitais ingressaram com medidas judiciais visando impedir as passeatas, obtendo êxito na maior parte destes pleitos sob a alegação, em gênero, de que tais manifestações caracterizariam estímulo à prática de crime, qual seja o uso de substância entorpecente ilegal.

Tal alegação foi feita mesmo tendo o site que convoca o movimento recomendado expressamente aos participantes que não portassem ou consumissem drogas ilegais durante o evento e limitando a participação na marcha a maiores de 18 anos.

A meu ver, data máxima vênia do entendimento esposado pelas autoridades judiciais competentes trataram-se, tais decisões, de um dos maiores equívocos de nossa jurisdição na história recente do país.

Obviamente, decisões judiciais não se descumprem, mesmo que as achemos inconstitucionais, pois gozam da presunção de legitimidade necessária à segurança jurídica das relações humanas e sociais reguladas pelo direito, valor maior a ser preservado no sistema jurídico.

Mas nada impede que sejam objeto de debate acadêmico e mesmo político, sob um ponto de vista crítico.Os direitos à livre expressão do pensamento e à reunião são garantidos pelo artigo 5º de nossa Constituição como valores fundamentais do regime democrático.

Princípio democrático é a norma constitucional que determina não apenas a adoção de decisões por uma maioria legislativa ou social, mas também - e em especial -, a preservação dos direitos das minorias.

O direito à livre expressão do pensamento, acompanhado pelo direito à reunião, é um dos instrumentos fundamentais a garantir a possibilidade da minoria se transformar em maioria pela arma do convencimento, o que opera como mecanismo de compensação das lutas físicas, trazendo ao parlamento o papel de “lócus” da disputa e solução pacífica entre interesses e valores conflitantes dos grupos sociais divergentes.

Exprimir de forma pacífica em praça pública seu pensamento discordante da maioria parlamentar que aprovou e mantém uma determinada lei penal vigendo é um direito inalienável da qualquer cidadão. E o ato não implica em estimular a conduta tipificada por esta mesma legislação (a instituição do “in favor off” na expressão da doutrina norte-americana).

Subtrair de parcela da cidadania o direito de protestar contra a vigência de qualquer lei, penal ou não, é ferir de morte o regime democrático. É subtrair-lhe o sentido, traduzindo-se em ato imperial, impróprio ao Estado Democrático de Direito.

Se algum receio havia que participantes da tal marcha acabassem por desbordar os limites do direito à livre expressão, passando a praticar atos de desobediência civil, como, por exemplo, consumindo a malfadada erva de público ou estimulando em discursos seu consumo, nada impedia que recomendação fosse feita aos policiais que acompanhariam a passeata que realizassem a prisão em flagrante dos infratores.

Na dúvida, o direito fundamental deve ser preservado em sua realização e não interditado.

Obviamente não há direito absoluto. O direito à livre expressão não pode transbordar de seus limites ofendendo a honra de alguém ou estimulando a prática de delitos. Mas postular a revogação de uma lei penal não pode se confundir com a estimulação ao crime que ela tipifica. Em essência, o direito à livre expressão foi criado exatamente para que a cidadania protestasse contra as leis e atos estatais. Restringir suas fronteiras, interditando conteúdos postulatórios de revogação de lei penal subtrai totalmente seu sentido.

Se postular pela revogação de uma lei não é conduta salvaguardada pelo direito de livre expressão, que condutas da cidadania seriam salvaguardadas por este direito? Posso expressar que sou contra as normas vigentes, mas não posso dizer quais e as respectivas razões?

Nas passeatas permitidas, como a do Recife, não ocorreram as temidas perturbações à ordem nem atos de desobediência civil. Tudo transcorreu dentro da ordem, sem perturbações de qualquer espécie. Perturbações, álias, aconteceram em alguns lugares onde as manifestações foram proibidas com alguns poucos que, equivocadamente mais exaltados, extravasaram aparentemente o determinado pela jurisdição.

Fica agora a questão: será que passeatas em favor da descriminalização do aborto e outras semelhantes também serão proibidas? Podem também serem compreendidas como um estímulo à prática do aborto, conduta tipificada em nossa ordem penal. Se forem, obviamente o sentido da democracia brasileira se esvairá. A situação lembra os tempos da ditadura militar, em que protestar contra a existência da Lei de Segurança Nacional era considerado crime contra a Segurança Nacional.

Normas penais não são cláusulas pétreas, imutáveis, e como tal estão sempre sujeitas ao debate público. Este debate não pode ser confundido com estímulo à prática das condutas vedadas. Criticar leis não significa desobediência civil, mas sim expressão essencial, mínima, do que seja um regime democrático e dos direitos da cidadania.

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