"Felizes os que observam o direito e praticam a justiça em todo tempo" (Salmo 106-3)
SUMÁRIO: I- Introdução; II- Princípios institucionais do Ministério Público; III– Ministério Público no processo penal: acusador obstinado ou defensor da sociedade? IV– Hipóteses legais de atuação do Parquet em favor do réu; V– Conclusão; VI– Referências Bibliográficas.
RESUMO: Neste artigo, busca-se explicitar a atuação do Ministério Público, no processo Penal. Se estritamente acusatória, como parte autêntica ou procedimental, ou se, fundamentalmente, timbrada pela imparcialidade (parte imparcial) e pautada pelo fim maior de realização da justiça, ainda que, para tanto, venha a agir em benefício do perseguido criminalmente.
PALAVRAS-CHAVE: Ministério Público – parte – acusação – justiça.
I – INTRODUÇÃO
Deve ter algum significado o fato de o cargo inicial da carreira do Ministério Público, no âmbito estadual, denominar-se ´´Promotor de Justiça´´, e não ´´Acusador Estadual´´, no caso dos membros dos Ministérios Públicos estaduais, ou ´´Acusador Federal´´, em relação aos do Ministério Público Federal, mormente se tendo em linha de conta indespível e exclusiva roupagem acusadora que se busca impingir ao Parquet, no processo penal.
Com efeito, dicionariza mestre Aurélio [01], acerca dos verbetes: 1) ´´promotor´´ – aquele que promove, fomenta´´; 2) ´´promover´´ – diligenciar para que se realize, se efetive, se verifique´´; e 3) ´´justiça´´ – conformidade com o direito, a virtude de dar a cada um aquilo que é seu´´.
Formula-se, então, o questionamento fulcral deste estudo, o de se saber se pode o Ministério Público, atuando como parte e em contra-razões à apelação da defesa, manifestar-se acorde à agitada tese absolutória.
Doutrina alienígena e pátria, pontuações pretorianas, bem como o esquadrinhamento da(s) função(ões) desempenhada(s) pelo Ministério Público, no processo penal, prestar-se-ão como balizas para o deslinde da questão.
II – PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO
O parágrafo 1º do artigo 127 da Constituição da República é peremptório, ao enunciar como princípios institucionais do Ministério Público "a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional" [02].
Qual, pois, o significado de cada um dos indicados princípios institucionais?
O que se entende por indivisibilidade?
Unidade se confunde com uniformidade de pensamento, seja no mesmo processo, seja, ademais, no âmbito maior da própria instituição?
Confere a independência funcional carta branca ao membro do Parquet para agir sem qualquer peia, lastreado tão-somente em seu livre arbítrio, e, até mesmo, com arbitrariedade?
Colocando os pingos nos "is", textua, pedagogicamente, Geraldo Brindeiro [03]:
"Por unidade, entende-se a capacidade dos membros do Ministério Público de constituírem um só corpo, uma só vontade, de tal forma que a manifestação de qualquer deles valerá sempre, na oportunidade, como manifestação de todo o órgão.
A indivisibilidade se caracteriza na medida em que os membros da instituição podem substituir-se reciprocamente sem que haja prejuízo para o exercício do ministério comum.
E a independência funcional significa que os membros do Ministério Público não devem subordinação intelectual a quem quer que seja, nem mesmo ao superior hierárquico. Agem em nome da instituição que encarnam de acordo com a lei e sua consciência".
À frente, após acentuar a necessidade de se assegurar "a independência e a imparcialidade dos membros do Ministério Público", a quem se deve conferir "garantias e vedações análogas às da Magistratura", dadas as atuações convergentes "na defesa da Constituição e das leis do País e dos direitos e liberdades dos cidadãos", arremata, ao fim, "Sem independência e imparcialidade os membros do Ministério Público não poderão cumprir sua missão".
Já no que toca tão-somente ao princípio da independência funcional, pontuam Mirabete, escorado no magistério de Frederico Marques, e Uadi Lammêgo Bulos, nesta ordem:
"Pelo princípio da independência funcional, os membros do MP, apesar de hierarquizados, mantêm independência e autonomia no exercício de suas funções, orientando sua própria conduta nos processos onde tenham de intervir, podendo haver discordância entre eles, inclusive no mesmo processo. Eventual discordância com as diretrizes ditadas pelo Procurador-geral, chefe da Instituição, ´´pode levar este a designar outro funcionário para determinado caso, nunca, porém, a censurar o subordinado ou a substituí-lo em caráter definitivo ou a pretender impor-lhe uma norma de agir que contrarie seu modo de pensar´´" [04].
"Um procurador regional da República, e.g., não deve obediência ao procurador-geral da República. Este não detém competência constitucional para ditar-lhe ordens, no sentido de agir desta ou daquela maneira no âmbito de um processo. Até as recomendações ditadas pelos órgãos de administração superior do Parquet não têm caráter cogente, ou imperativo, porque não são normas jurídicas. Seguem-na quem desejá-las. A única hierarquia, vislumbrada na configuração constitucional do Ministério Público brasileiro, é de ordem administrativa, jamais funcional, partindo da chefia da instituição" [05].
Na mesma trilha, jurisprudência roborativa:
"Ministério Público – Parecer baseado na livre convicção e interpretação da lei – Inobservância do art. 127, par. 1º., da CR – Inocorrência – Princípio da unidade e da indivisibilidade do MP que não significa que seus integrantes tenham que apresentar opiniões idênticas nos processos em que atuam – Preliminar rejeitada" [06].
"O princípio da unidade e da indivisibilidade do MP não implica vinculação de pronunciamento de seus agentes no processo, de modo a obrigar que um promotor que substitui outro observe obrigatoriamente a linha de pensamento de seu antecessor. Se um representante do MP manifestar-se na fase das alegações finais em prol da exclusão de qualificadoras, o que lhe foi acolhido na sentença de pronúncia, um outro membro do Parquet que o substitui no processo pode interpor recurso pugnando para que se preserve a acusação inicial, não merecendo abrigo a tese da falta de interesse processual" [07].
III – MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO PENAL: ACUSADOR OBSTINADO OU DEFENSOR DA SOCIEDADE?
Em toda persecução penal, que, em verdade, queda-se timbrada por pautas ético-jurídicas inerentes ao Estado Democrático de Direito, o Ministério Público não toma a acusação, ou mesmo a investigação, como um fim em si mesmo, mas, sim, como instrumento único de restauração do tecido social arrostado, por conduta subsumida, prima facie, à moldura típica de infração penal.
Não se apresenta, pois, o Ministério Público, no processo penal, como acusador obstinado, chova ou faça sol, na busca da condenação daquele que, uma vez abatido, possibilitará a contabilização de mais uma "vitória" ao estado-persecutor.
Não e não. No processo penal, o Ministério Público não quer a condenação pela condenação; não faz do perseguido criminalmente sujeito a ser inexoravelmente custodiado, ao final; não prova do sentimento de cumprimento do dever unicamente pelas condenações, até mesmo injustas, alcançadas.
Busca, verdadeiramente, o Parquet a justa aplicação da lei penal à hipótese concreta submetida ao Judiciário, de par com o acautelamento dos direitos e garantias do réu, sendo certo, ademais, que, no molde da escorreita ótica de Alfredo Vélez Mariconde [08], a incidência da lei penal implica:
"un pronunciamento afirmativo o negativo sobre el fundamento de las pretensiones; vale decir, la ley sustantiva se aplica tanto cuando se condena como si se absuelve de la imputación. La absolución importa ele juicio de que el caso no está comprendido em la ley".
A constituição e as leis do país, em geral, e a prova do processo e sua própria consciência, no caso concreto, pautam a atuação do membro do Parquet na persecução penal. Não é porque se apresenta como órgão legitimado para a acusação que não deve postular a absolvição, nas fases processuais próprias, desde que em face de um conjunto probatório débil ou, mesmo, da residência em seu espírito de fundadas dúvidas quanto à culpa do réu.
Afigura-se, de conseguinte, o Ministério Público, no processo Penal, como órgão defensor da sociedade e das garantias processuais individuais, não como um predador consumido pelo desejo do abate da presa.
Parte imparcial, no processo criminal, é o Ministério Público, e não parte autêntica ou procedimental. Do contrário, como se admitir, sem ofensa à lógica, possa ser argüida, e eventualmente acatada, a suspeição ou o impedimento de órgão ministerial considerado parte, em sentido estrito, como o prevêem os artigos 104 e 258 do Código de Processo Penal.
As ensinanças abalizadas de Julio B. J. Maier e Eugênio Pacelli de Oliveira afiançam a indispensável imparcialidade que deve balizar a atuação do Parquet.
Para o doutrinador portenho [09]:
"b) em este modelo, contrapuesto al anglosajón, el ministerio público fue construido – también com ciertas reservas, pero por principio – más que como parte em el procedimiento como órgano de persecución objetivo e imparcial, a semejanza de los jueces, con uma tarea presidida por la misma meta, colaborar em la averiguación de la verdad y actuar el Derecho penal material, com la obligación de proceder tanto em contra como a favor del imputado, según el caso mismo lo aconsejara, característica que le valió al oficio el mote descriptivo de ´´custodio de la ley´´ y, más modernamente, de ´´órgano de la administración de justicia´´".
Na mesma esteira, Pacelli [10] dicciona:
"Ao contrário de certos posicionamentos que ainda se encontram na prática judiciária, o Ministério Público não é órgão de acusação, mas órgão legitimado para a acusação, nas ações penais públicas. A distinção é significativa: não é por ser o titular da ação penal pública, nem por estar a ela obrigado (em razão da regra da obrigatoriedade, já estudada), que o parquet deve necessariamente oferecer a denúncia, nem, estando esta já oferecida, pugnar pela condenação do réu, em quaisquer circunstâncias. Enquanto órgão do Estado e integrante do Poder Público, ele tem como relevante missão constitucional a defesa não dos interesses acusatórios, mas da ordem jurídica, o que o coloca em posição de absoluta imparcialidade diante da e na jurisdição penal.
(...)
O atuar imparcial do Ministério Público está relacionado com a inteira liberdade que se lhe reconhece na apreciação dos fatos e do direito a eles aplicável. O Ministério Público é livre e deve ser livre na formação de seu convencimento, sem que esteja vinculado a qualquer valoração ou consideração prévia sobre as conseqüências que juridicamente possam ser atribuídas aos fatos tidos por delituosos. Nunca é demais repetir: ao Estado (e, aqui, ao Ministério Público) deve interessar, na mesma medida, tanto a condenação do culpado quanto a absolvição do inocente. Essa é a verdadeira leitura a ser feita da norma do art. 257 do CPP".
IV – HIPÓTESES LEGAIS DE ATUAÇÃO DO PARQUET EM FAVOR DO RÉU
Mesmo editado nos albores da década de 40, do século passado, o Código de Processo Penal é pródigo na previsão da possibilidade de atuação do Ministério Público em benefício do réu.
Exemplificam, em rol que não se pretende exaustivo, pontuações atinentes a:
1) pedido de arquivamento de inquérito policial ou de peças de informação, quando se aborta, já em seu nascedouro, a persecução penal judicial;
2) manifestação pela anulação do processo, dada a ausência de defesa;
3) aquiescência a pleito de relaxamento de prisão ou de liberdade provisória;
4) posição favorável em habeas corpus, tendo, por impetrado Delegado de Polícia, e, por julgador, Magistrado de 1º grau;
5) postulação de absolvição em alegações finais;
6) interposição de recurso em favor do réu, ou mesmo de habeas corpus;
7) reconhecimento da própria suspeição ou de impedimento;
8) requerimento de instauração de incidente de insanidade mental do acusado;
9) pleito de diligências favoráveis ao réu, na fase do artigo 499 do CPP;
10) pedido de impronúncia ou de absolvição sumária em alegações derradeiras no procedimento do júri;
11) pedido de absolvição na sessão do Tribunal do Júri;
12) manifestação pela declaração da extinção da punibilidade do réu.
V – CONCLUSÃO
Sendo, de conseguinte, a atuação do Ministério Público, no processo penal, pautada pela independência e imparcialidade, as quais se subordinam tão-somente à Constituição e às leis; à prova do processo e à própria consciência ética do órgão ministerial, tudo de par com expressas dicções legais no sentido da possibilidade do Parquet laborar processualmente em benefício do réu, dúvida inexiste em se afirmar: sim, pode, e deve, o membro do Ministério Público, atuando como parte e em contra-razões à apelação da defesa, pugnar pela absolvição do réu-condenado, desde que supedaneado na prova produzida nos autos.
Não se configura, pois, in casu, ato de lesa-instituição, mas, em verdade, patente ato de promoção de justiça.
Nada obstante, se indigitado posicionamento se afigura afrontoso a um certo sentimento de corpo é outra questão, e, penso, de somenos importância.
VI – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, José Osterno Campos de. Verdade processual penal: limitações à prova. 2. tir. Curitiba: Juruá, 2006.
________. Prescrição antecipada ou trabalho de Sísifo. Disponível na internet:
http://www.direitocriminal.com.br/, 20.02.2001.
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BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apud BASTOS, Celso; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1997, 4.v., t. IV, arts. 127 a 135.
BRINDEIRO, Geraldo. O Ministério Público Eleitoral e a revisão constitucional. Apud BASTOS, Celso; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1997, 4.v., t. IV, arts. 127 a 135.
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Notas
01.Dicionário Aurélio Eletrônico Século XXI, Versão 3.0, novembro 1999
02.BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 39 ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006
03.BRINDEIRO, Geraldo. O Ministério Público Eleitoral e a revisão constitucional. Apud BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1997, 4. v., t. IV, arts. 127 a 135, p. 15.
04.MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 16. ed. rev. e atual. por Renato N. Fabbrini. São Paulo: Atlas, 2004, p. 357.
05.BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 6. ed. rev., atual. e ampl. até a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 1.125.
06.Brasil, Tribunal de Justiça de São Paulo, Apud BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1997, 4. v., t. IV, arts. 127 a 135, p. 15
07.Brasil, Superior Tribunal de Justiça, Apud MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 6. ed. atual até a ec nº 52/06. São Paulo: Atlas, 2006, p. 1.681.
08.MARICONDE, Alfredo Vélez. Derecho procesal penal. 2. ed. Buenos Aires: Lerner Ediciones, 1969, v. 2, p. 332-333.
09.MAIER, Julio B. J. El Ministerio Público ¿ un adolescente? In: ______. (compilador). El Ministerio Público en el proceso penal. 1. reimpresión. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2000, p. 30.
10.OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 6. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 384-385.
Por José Osterno Campos de Araújo, procurador da República, www.jus.com.br, acessado em 04/02/2008.
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