A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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28 de fevereiro de 2008

LAXISMO PENAL E A LEI 11.343/2006


Laxismo Penal é a tendência a propor solução absolutória, mesmo quando as evidências do processo apontem na direção oposta, ou a aplicação de punição benevolente, desproporcionada à gravidade do delito, às circunstâncias do fato e à periculosidade do infrator, tudo sob o pretexto de que, vítima do esgarçamento do tecido social ou de relações familiares deterioradas, o delinqüente se sujeita, quando muito, à reprimenda simbólica, desconsiderando, absolutamente, o livre-arbítrio na etiologia do fenômeno transgressivo.

A nova Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que entrou em vigor no dia 08.10.2006, trouxe profundas modificações em relação às que a antecederam no trato do mesmo assunto. Ressaltem-se duas. A primeira é a eliminação da pena de prisão para ao usuário/dependente, ou seja, quem tem posse de droga para consumo pessoal (artigo 28, caput), bem como para aquele que, com o mesmo propósito, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica (artigo 28, § 1º). A segunda trata da distinção entre o chamado traficante “profissional” e o eventual, tendo, este último, com a nova legislação, direito subjetivo a uma sensível redução de pena (artigo 33, § 4º).

No contexto do artigo 28 do diploma legal ora em comento, mister se faz distinguir, prontamente, o usuário do dependente de drogas, com intuito de se descobrir qual medida alternativa será mais adequada em cada caso concreto (advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo).

É cediço que nem sempre o usuário torna-se dependente. Aliás, em regra, o usuário de droga não se converte em um dependente, da mesma maneira que não se confunde com o traficante ou com o financiador do tráfico. Assim como nem todos que tomam um copo de uísque são alcoólatras, também há quem use drogas sem ser dependente. A nova lei, contudo, trata usuário e dependente praticamente da mesma forma, diferenciando-os, somente, como mencionado, quanto à medida alternativa a ser adotada.

Ocorre, entretanto, que há uma diferença abissal entre o usuário e o dependente. Enquanto os dependentes apresentam necessidade física ou psíquica muito forte, quase invencível, de consumir a droga, chegando a manifestar sintomas dolorosos decorrentes da interrupção da ingestão da substância, os usuários, imensa maioria, a consomem por opção, normalmente em momentos de lazer. Grosso modo, pode-se dizer que o usuário mantém seu livre-arbítrio intacto com relação ao consumo da droga enquanto o dependente não mais possui essa liberdade de escolha. Irrefutável o fato de que quem alimenta o tráfico são dependentes e usuários pois, conforme vetusta lei de mercado, havendo procura haverá oferta. Conseqüentemente, para diminuir o tráfico há que se diminuir o número de dependentes e usuários de drogas. Daí a pergunta: será que o abrandamento da pena de porte de droga para uso terá o condão de reduzir ou incrementar o tráfico e todas as demais formas de criminalidade que o permeiam?

Como brilhantemente destacou o Delegado Hebert Reis Mesquita, Chefe do Serviço de Projetos Especiais da Divisão de Entorpecentes/CGPRE, em artigo veiculado na edição de número VIII da revista Phoenix magazine, “se a preocupação do legislador era impedir que o usuário vá para a cadeia, desnecessárias as mudanças. Não há um só usuário preso pelo crime de porte para uso. Todos se valem de benefícios legais como proposta de aplicação imediata da pena (Lei 9.099/95), suspensão condicional do processo (Lei 9.099/95), sursis (art. 77 do Código Penal) e substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito e/ou multa”.

A novel legislação pretende que o porte de drogas para uso sequer passe pela polícia (sempre que possível) procurando tratar usuários e dependentes como vítimas, não criminosos. Já efetuada a diferenciação entre esses dois tipos de consumidores de drogas, surge novo questionamento: serão os usuários - maioria esmagadora, vale sempre ressaltar – vítimas? Ou será a Lei 11.343/06, nesse e em outros aspectos laxista?

O Laxismo Penal é orientação doutrinária visceralmente em desacordo com os textos clássicos e modernos sobre direitos fundamentais do ser humano. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, inserta na Constituição Francesa, de 1795, proclamava, já no artigo primeiro, que “os direitos do homem em sociedade são a liberdade, a igualdade, a segurança, a propriedade”, acrescentando que “a segurança resulta do concurso de todos, para assegurar os direitos de cada qual” (art. 4º). Já a Constituição Francesa de 1791, nas Disposições Fundamentais, contidas em seu Título Primeiro, consignava que “a liberdade nada mais é do que o poder de fazer tudo o que não prejudica os direitos alheios ou a segurança pública”. A Constituição da República Federativa do Brasil garante “aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (artigo 5º, caput).

Uma vez que o crime de tráfico de drogas e todos os demais que estão a ele intimamente atrelados geram uma notável insegurança para toda a sociedade e, sendo a segurança um dos direitos fundamentais preconizados em diferentes textos legais desde o Iluminismo, suscitam-se novas questões: tendo o usuário livre-arbítrio com relação ao consumo de drogas e, sabendo que o tráfico gera imensos malefícios sociais, dentre os quais a insegurança, não estaria o usuário, com seu comportamento comissivo, violando aberta e espontaneamente a lei e colocando-se em estado de guerra contra a sociedade? São justas e suficientes as medidas alternativas previstas pelo artigo 28 da Lei 11.343/06 no sentido de prevenir e intimidar a sociedade e o próprio agente, cujo comportamento egoísta contribui para comprometer a segurança pública? Quem é a vítima? O usuário de drogas, que tem condições de optar entre fazer ou não uso da substância, ou a sociedade, cuja segurança fica a mercê da opção feita pelo usuário?

Outro ponto onde o Laxismo Penal se faz presente na Lei 11.343/06 é no § 4º do artigo 33, que garante ao traficante o direito subjetivo a uma redução de pena de um sexto a dois terços, nos casos em que for primário, tenha bons antecedentes e não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. O citado dispositivo parece ter sido idealizado pelo legislador com o único intuito de encorajar os primários, de bons antecedentes, a ingressarem na lucrativa atividade do tráfico de drogas - principalmente aqueles conhecidos no jargão policial como “mulas”, elementos, normalmente sem passagens policiais anteriores, que se aventuram realizando o transporte da droga – assegurando-lhes uma considerável redução de pena, no caso, pouco provável - pois é sabido que o número dos que conseguem escapar é, infelizmente, muito superior - de serem flagrados cometendo o delito.

Diante disso, não resta outra alternativa senão vaticinar, com consternação, o incremento do crime de tráfico de drogas no Brasil, pois é impossível conter a vazão fechando-se algumas torneiras enquanto outras são abertas.

Por Sérgio Luiz Queiroz Sampaio da Silveira, Delegado da Polícia federal.

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