A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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26 de outubro de 2007

O acusado decide falar - Caso Promotor Thales


Na madrugada de 30 de dezembro de 2004, o promotor de justiça substituto Thales Ferri Schoedl, então com 26 anos, matou Diego Mendes Modanez, de 20 anos, jogador de basquete, e feriu o estudante Felipe Siqueira Cunha de Souza, na época com a mesma idade de Diego. Todos estavam na Riviera de São Lourenço, condomínio de alto padrão situado no município de Bertioga, litoral de São Paulo.

De acordo com a acusação, ao sair de um luau na praia o promotor irritou-se com nada mais do que alguns olhares das vítimas para a sua namorada, Mariana Ozores Bartoletti, de 19 anos. Depois de discutir, Thales sacou a sua pistola e, descontrolado, disparou 12 tiros com a intenção de assassinar os jovens. Seis acabaram atingindo os alvos: dois no tórax, um no braço e outro na perna de Felipe; e um no peito e outro no braço de Diego, que não resistiu aos ferimentos. Os crimes foram cometidos por motivo fútil e as vítimas não tiveram chance de se defender.

Conforme a versão do acusado, quando ele e a sua namorada passavam por um grupo de jovens, ouviram comentários grosseiros e constrangedores sobre Mariana. Thales reclamou da ofensa. Diego, Felipe e outros rapazes avançaram com a intenção de agredi-lo. Thales, então, identificou-se como promotor de justiça. Numa seqüência provocada por uma série de ameaças, Thales alertou-os de que estava armado, mostrou-lhes a arma, disparou tiros de advertência, para o chão e para o alto, e fugiu por cerca de cem metros, sempre sendo perseguido por esses e outros jovens que eram incentivados por várias pessoas, aos gritos de "Mata! Mata!". Ao se ver encurralado, apavorou-se e foi obrigado a atirar nos jovens para se defender, pois era menor e mais franzino do que os seus oponentes (Thales tem 1,70m; Felipe, 1,98m; Diego tinha 1,94m), que continuavam tentando agredi-lo e tirar-lhe a pistola. Thales atirou porque temia ser espancado até a morte ou assassinado com a sua própria arma.

A entrevista

Veio a cobertura jornalística. Muitos repórteres, editores e comentaristas revelaram-se, na melhor das hipóteses, mal informados; na pior, trilharam o atalho do preconceito contra cidadãos, funcionários públicos e instituições. Poderiam ter feito melhor. Poderiam criticar para melhorar, calcando-se em informações que contribuiriam com o enriquecimento do debate nacional. Nada disso. É mais fácil jogar para a torcida. Preferiu-se prejulgar o réu para agradar o público. Preferiu-se jogar as instituições no lixo. Se a Justiça nem sempre é justa, nós, jornalistas, devemos nos arvorar em juízes. Tal é o pensamento corrente. Se não concordamos com determinadas decisões do Judiciário e dos outros Poderes, ainda que sejamos ignorantes ou ineptos para apreciá-las, basta-nos dizer: "Não é bom para o Brasil!".

Acordem, colegas! Nós, jornalistas, não somos o Brasil. Somos cidadãos brasileiros. Há outros. Tenhamos humildade. Devagar se vai longe. Ainda assim, para chegar é preciso andar, o que exige algum esforço...

Temas relevantes, como o chamado foro privilegiado, o corporativismo e a eficácia do Tribunal do Júri, entre outros, raramente foram debatidos como se deveria. Perdeu-se, com o Caso Thales Schoedl, a oportunidade de discutir no nível adequado sobre o que serve e o que não serve. Perdeu-se a ocasião de aperfeiçoar a nossa democracia, ainda jovem e frágil.

No mau jornalismo, o adjetivo sempre será preferível ao substantivo. É mais fácil bater no peito, como o faria um símio, e berrar em protesto contra "uma pouca-vergonha" qualquer.

Decidiu-se, então, por escrever, neste Observatório, uma série sobre a cobertura do caso. Nunca se disse, nestes artigos, que o réu é inocente. Nunca se disse que o réu é culpado. Criticaram-se, tão-somente, a avidez precondenatória e manipuladora da mídia, fruto da parceria com alguns funcionários e partícipes outros do Direito que, sem dúvida, têm agido sob inspiração kafkiana.

Foi a este espaço que Thales Ferri Schoedl, acusado de um homicídio e de uma tentativa de homicídio, decidiu, enfim, dar a sua primeira entrevista. Por dois motivos, diz o promotor: por ter sido a primeira vez que se escreveu após a leitura de cada uma das mais de 1.500 páginas do processo criminal; e porque, em várias ocasiões, seus advogados apresentaram, nas entrevistas, informações e documentos importantes que acabaram desprezados ou distorcidos na edição - o que não estaria ocorrendo por aqui: "Em várias entrevistas com os meus advogados, eu me recordo que eles levavam os autos, mostravam os autos aos jornalistas, depoimentos, laudos, e quando o programa era apresentado na televisão, isso não era mostrado, nenhum depoimento. É claro que eu não podia me sentir à vontade para dar entrevista, diante desse contexto", diz Schoedl.

Eis a entrevista de Thales Ferri Schoedl, concedida no escritório dos seus advogados, em São Paulo. Como se pretende privilegiar o conteúdo da conversa, evitando-se induzir pelas aparências, para lá ou para cá, optou-se por suprimir as descrições, como o modo de falar, as idiossincrasias, as características físicas e pessoais observadas por este repórter.

É a primeira vez que o senhor se dirige à opinião pública, desde o episódio da Riviera. O que o senhor tem a dizer, depois destes quase três anos de silêncio?

Primeiramente, o que eu posso dizer sobre os fatos é que eu fiz tudo o que eu podia para evitar os disparos. Eu nunca pensei que isso poderia acontecer comigo algum dia. Eu procurei de todo modo evitar que isso acontecesse, mas infelizmente em nenhum momento as vítimas desistiram de me agredir e de tomar a minha arma. Por isso, eu fui obrigado a agir em legítima defesa. Eu também estou sofrendo com isso. Não tem como passar um dia sem pensar no que aconteceu. Mas eu confio na Justiça, acredito que eu agi em legítima defesa. Infelizmente, até o momento, os fatos não foram divulgados com isenção pela maioria da imprensa. É isso que me entristece. Foram ditas muitas inverdades sobre vários aspectos, e é isso que acaba incomodando. Incomoda a mim, os meus familiares, meus pais estão sofrendo, meus irmãos, amigos. Não tem uma pessoa que, após ler os autos – eu costumo levar os depoimentos para os amigos, as pessoas próximas lerem – , todos ficam espantados, porque criou-se uma versão inicial de que eu efetuei 12 disparos contra pessoas que mexeram com a minha namorada, e isso nunca aconteceu.

Quais são as versões que não teriam sido fiéis aos autos e aos fatos?

São várias. Primeiramente, a divulgação do meu laudo psicológico: foram divulgados somente alguns trechos e somente os meus defeitos [de acordo com o que foi publicado por alguns veículos, baixa auto-estima, imaturidade e dificuldade de lidar com pressão]. Não foram divulgadas as minhas qualidades. Todo ser humano que se submeta a um exame psicológico, este exame irá apontar, com certeza, defeitos e qualidades. E somente os meus defeitos foram demonstrados de forma descontextualizada. Porém constavam do laudo qualidades como empenho, motivação, vontade de vencer, disciplina e diplomacia nos contatos. E o resultado final foi que eu estava apto ao cargo com conceito ‘bom’.

O laudo estava no processo administrativo...

Isso, inclusive o laudo é um documento sigiloso, somente eu, que fui examinado, posso divulgar o que consta no laudo, mas mesmo assim ele foi ilicitamente divulgado pela imprensa, e, o que é pior, de forma parcial.

O que mais, na sua opinião, teria sido divulgado de forma incorreta?

Costuma-se afirmar também que eu estava num luau, numa festa, armado na praia. Não foi. Os fatos ocorreram em frente a um shopping, na rua, que é via pública. Eu não estava no luau, e isso está provado no processo, há um laudo pericial sobre o local dos fatos. Inclusive este laudo demonstra que, entre o local onde se iniciou a discussão e o local onde ocorreram os disparos, há uma distância de aproximadamente cem metros, que comprova, por exemplo, que eu fugi das vítimas antes de atirar, mesmo estando armado.

"Me entrevistaram com câmeras escondidas"

O que foi sendo publicado a partir do momento em que ocorreram os fatos?

Eu lembro que, logo que aconteceu, eu fui preso, fui para a Cavalaria, onde permaneci preso por 49 dias. Eu lembro como se fosse ontem, que logo no primeiro dia já apareceu uma simulação, num canal de televisão que eu não me recordo qual foi, aparecendo aquela versão que se divulgou, que eu estava andando com a minha namorada, mexeram com ela, eu virei e comecei a efetuar diversos disparos contra aquelas pessoas. Eu fiquei desesperado. Fui até falar para todo mundo: ‘Não, não foi assim que aconteceu!’. Já havia alguns depoimentos, posteriormente. Eu lembro que eu mostrava os depoimentos, quando eu estava preso, para as pessoas que vinham me visitar, e as pessoas ficavam espantadas: ‘Nossa, mas a imprensa não divulgou essas versões...’ Infelizmente nunca se divulgou a versão que está aí nos autos.

A reconstituição foi feita com base na versão de quem?

Até hoje eu não sei, porque nem a versão da própria vítima sobrevivente, que está no processo, sustenta essa versão que foi divulgada na televisão. A própria vítima afirmou que continuou, que me perseguiu, que tentou ‘dar o bote’ para tomar a minha arma, mesmo após os disparos de advertência. Eu sinceramente não sei de onde veio essa versão. Só tenho certeza de que dos autos ela não veio.

Houve outros abusos?

Por exemplo, quando me perseguiram, pouco antes do julgamento do Órgão Especial do Colégio de Procuradores do Ministério Público. Fizeram ligações clandestinas sobre a minha vida, sobre o meu dia, me entrevistaram com câmeras escondidas, sem eu estar sabendo. Isso eu achei uma violação do direito à intimidade. Claro que existe direito à informação jornalística, constitucionalmente garantido, que deve ser preservado, mas ao mesmo tempo existe o direito à intimidade. Nenhum direito constitucional é absoluto. Ele deve ser exercido com responsabilidade. Esse fato eu achei lamentável, inclusive objeto de ação judicial que eu fui obrigado a propor. Outro exemplo: parte da imprensa divulgou que, por conta da minha idade à época do concurso, eu só teria sido aprovado porque o meu avô é desembargador e o meu pai era chefe da maçonaria e influente no Ministério Público. Meus dois avôs já faleceram, nenhum foi desembargador e meu pai não é chefe da maçonaria e não conhecia ninguém no Ministério Público.

"Foi lamentável divulgar o endereço de um promotor"

Após o julgamento do Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo, foi divulgado que eu estava movendo uma ação contra a Fazenda Pública pleiteando cerca de R$ 300 mil em salários atrasados. Eu me espantei com a notícia, procurei saber o que estava acontecendo e apurei que na verdade esta é uma ação coletiva proposta pela Associação Paulista do Ministério Público em nome de cerca de cinqüenta promotores, incluindo a mim, em que se pleiteia o pagamento de diárias referentes ao ano de 2003, tendo eu direito a cerca de R$ 5 mil. A intenção da reportagem foi me denegrir.

O endereço da sua casa foi divulgado na TV...

Esse fato também é gravíssimo, porque, enquanto eu estava trabalhando, na maioria do tempo eu atuava no Tribunal do Júri. Atuava em processos-crime graves, não vou citar cada um, até para me preservar, mas atuava basicamente no Tribunal do Júri com quadrilhas, crimes praticados por policiais, foi até por isso que eu comecei a andar armado, porque no início da carreira eu não andava armado, só que eu fui ameaçado após um júri em que eu obtive a condenação do réu. Eu achei extremamente lamentável divulgar o endereço na televisão de um promotor de justiça, ainda mais que atue nessa área.

Quais foram as conseqüências da divulgação do seu endereço?

Meus familiares ficam com medo. Porque se eu morasse sozinho eu temeria apenas pela minha vida, mas eu moro com a minha família. Fico preocupado. Um dia picharam o muro da minha casa, da casa em frente à minha, da minha vizinha, com dizeres ofensivos ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. Eu imediatamente comprei tintas e pedi para que uma pessoa pintasse o muro da vizinha. Essa foi uma das ações que aconteceram, e no meu entender é gravíssimo.

O senhor tem sido classificado por vários jornalistas como assassino. O que o senhor pensa dessa atitude?

Eu acho que a pessoa não deve ser chamada de assassina antes de ser julgada. O termo correto para uma pessoa que está respondendo processo por homicídio é acusado de homicídio, não assassino. Assassino tem um tom pejorativo, eu acredito nisso, como se já estivesse condenando a pessoa. Além disso, eu acredito que eu não tive no dia dos fatos uma conduta de assassino. Eu não premeditei nada, pelo contrário: fiz tudo o que eu podia para evitar os resultados, os disparos. Isso não se coaduna com a idéia de um assassino, pelo menos na minha opinião.

Muita gente não acredita na legítima defesa, pelo fato de o senhor ter disparado 12 vezes...
Eu queria esclarecer que eu não efetuei 12 disparos contra as vítimas. Metade desses disparos foram de advertência. Eu atirei para cima, para o chão, guardei a arma... Antes já havia me identificado como promotor de justiça, afirmei que estava armado, eles disseram que eu não era promotor, que a arma era de mentira. Após os disparos de advertência, eu fugi. Depois efetuei novos disparos de advertência, fui encurralado, daí prosseguiram todos os fatos que eu já narrei no meu interrogatório. O que eu queria deixar claro é que eu não efetuei 12 disparos porque mexeram com a minha namorada. Eu efetuei disparos, que não foram 12, para me defender, após os disparos de advertência. Inclusive os meus dois braços ficaram arranhados, quando as vítimas tentaram pegar a minha arma. Isso está no laudo pericial. Este laudo, que não é sigiloso, nunca foi divulgado, e o laudo aponta lesões corporais nos meus dois braços ["Escoriação de 2cm de forma linear no antebraço direito/ Escoriação de 2cm de forma linear e quatro Escoriações de 5mm de diâmetro no braço esquerdo/ Escoriação de 4cm de forma linear no antebraço esquerdo"].

De qualquer forma, os seis tiros que atingiram as vítimas não teriam sido excessivos? Por que o senhor disparou seis vezes contra os dois jovens?

Como já esclareci, eu fiz de tudo para evitar os resultados. Esses eventos ocorreram contra a minha vontade. Quero esclarecer que mesmo após os tiros de advertência, para o alto e para o chão, os rapazes continuaram a correr atrás de mim. A própria vítima admitiu que eu disparei para o chão e para cima. Eu guardei a arma e tentei sair do local. Só disparei quando percebi que minha vida estava em perigo, quando eles tentaram tomar a arma. E parei de atirar no exato momento em que eles cessaram a agressão. O senhor pode ver nos autos a declaração da vítima de que, mesmo após ser atingida, continuou a correr atrás de mim e ainda falou em ‘bote’ para tomar a minha arma.

O laudo do exame necroscópico de Diego diz que um dos ferimentos apresenta uma leve inclinação para trás e para baixo ["...ferimento pérfuro-contuso de entrada (A) com 7 milímetros de diâmetro, direcionado para a esquerda, com leve inclinação para trás e para baixo..."]. Seria uma indicação de que as vítimas já estavam caídas quando o senhor atirou?

As vítimas não estavam caídas. Estavam correndo atrás de mim apoiadas pelas pessoas ali presentes que gritavam para me matar e que a arma era de brinquedo. Os disparos que atingiram as vítimas foram dados no momento do embate, quando eu senti que elas iriam tirar a arma de mim. Eles não estavam caídos quando foram atingidos. Como já afirmei, a própria vítima admitiu que mesmo após ser atingida continuou no meu encalço. Nenhuma testemunha confirmou, ao contrário do que constou em um editorial de jornal, que as vítimas estavam no chão quando foram atingidas. Essa é uma afirmação que não tem qualquer respaldo nos autos, basta ler.

Por que o senhor estava armado durante comemorações de pré-Réveillon? Muitos criticam a sua atitude. Havia muita gente no local. Poderia pôr em risco a vida das pessoas...

Eu não estava fazendo parte de uma festa. Naquele dia eu retornava do trabalho, estava em Iguape, cheguei na Riviera de São Lourenço, apenas me dirigi ao local para buscar a minha namorada e ir embora. Eu não quis deixar a minha arma na minha casa, porque havia muitas pessoas lá, e também não quis deixar no carro – o meu veículo inclusive já teve o aparelho de som furtado três vezes na Riviera de São Lourenço. Como só iria encontrar minha namorada e ir embora, achei que não haveria problema de estar armado apenas para buscá-la. Eu ressalto que eu não fazia parte da festa, não estava me divertindo, e se alguma vez eu saí para alguma danceteria armado, eu sempre deixava a arma no cofre do estabelecimento, não ficava freqüentando lugares armado.

Mas houve mesmo necessidade de o senhor puxar a arma?

Infelizmente houve, porque as pessoas passaram a avançar na minha direção, queriam me agredir. Conforme as testemunhas mesmas do processo afirmaram, gritavam ‘Vamos matar!", ‘Vamos espancar!". Não eram só dois, eram cerca de dez pessoas vindo na minha direção. Por isso é que eu saquei a arma e efetuei disparos de advertência, que não foram poucos. Eu até hoje não entendi por que, após efetuar disparos de advertência, me identificar como promotor, guardar a arma e fugir, aquelas pessoas não desistiram de me agredir e de tentar pegar a minha arma.
Algumas testemunhas dizem que muita gente achou que a arma era de brinquedo, pelo que consta dos autos. A que o senhor atribui isso? Que tipo de arma o senhor tem que faz com que as pessoas não acreditem que a arma é de verdade?

Na minha opinião, talvez eles tenham achado que a arma era de brinquedo porque eu portava uma 380 Millennium, que é um pouco menor que a 380 comum. E ela não era cromada, era uma arma fosca. Talvez, por essas razões, eles tenham achado que a arma era de brinquedo. Posteriormente, além de acharem que a arma era de brinquedo, as pessoas gritavam que os disparos eram de festim, que eram tiros de festim. Tanto que, após os primeiros dois tiros de advertência, eu guardei a minha arma na cintura e, momentaneamente, por alguns segundos, eles pararam de investir contra mim. Foi no momento que eu virei de costas com a minha namorada, para ir embora e deixar o local, que uma das pessoas gritou que a arma era de festim, talvez porque eu não tenha acertado ninguém. E aí é que aquele grupo todo veio em cima de mim e eu tentei fugir de todos.

O fato de estar armado não teria dado mais confiança para reagir verbalmente aos supostos comentários sobre a sua namorada? O senhor teria reagido aos comentários se não estivesse armado?

Primeiramente, não foram simples comentários sobre os atributos da minha namorada, mas sim palavras de baixo calão que muito a constrangeram e a mim também. Eu apenas me virei e pedi respeito, pois ela estava acompanhada. Eu acho que toda pessoa tem o direito de estar acompanhada sem ser molestada. E que ninguém é obrigado a suportar calado um gracejo dessa natureza, independentemente de estar armado ou não. Eu, como qualquer pessoa, tenho o direito de reclamar contra esse ato ofensivo. O errado não é reclamar contra o gracejo. A conduta imoral é mexer com quem está acompanhado, o que inclusive configura contravenção penal. Posso dizer que é muito cômodo criticar a minha conduta de ter reclamado contra essa importunação quando você nunca passou por essa situação. É bem verdade que muitas pessoas no meu lugar não iriam apenas reclamar, mas sim partir para a briga. Isso é o que rotineiramente acontece. Eu só pedi respeito, mas eles optaram por me agredir e tomar a minha arma. Normalmente nós acompanhamos vários casos em que são divulgadas as agressões perpetradas por grupos de jovens contra pessoas que estão sozinhas. Por exemplo, a faxineira no Rio de Janeiro e o próprio índio Pataxó. Será que se essas pessoas estivessem armadas e conseguissem reagir contra os agressores, elas também seriam chamadas de assassinas?

Muitos jornalistas criticam o fato de o senhor ter sido mantido no cargo, recebendo R$ 10, 5 mil por mês. É uma crítica que ecoa na opinião pública...

A Constituição Federal determina que é uma vedação ao promotor de justiça exercer outra profissão remunerada, salvo a de magistério. Então a lei é uma decorrência do que estabelece a Constituição Federal. Quando o promotor está suspenso das funções ou em disponibilidade, continua recebendo os seus vencimentos justamente porque ele não pode exercer outra profissão, não pode advogar, por exemplo. Eu queria também esclarecer que eu já formulei diversos requerimentos pleiteando o retorno ao serviço. Todos foram indeferidos. Esse é um fato que me incomoda, porque é a profissão que eu amo, é o trabalho que eu amo. Isso me faz falta, eu gostava de trabalhar, estar no fórum. Até comentei outro dia, a gente foi numa das audiências, eu sinto falta daquele ambiente, porque é a profissão que eu amo, que eu sempre lutei para exercer. Isso me faz muita falta, por mais que eu esteja estudando, fazendo cursos, eu sinto falta do trabalho no Ministério Público.

Mas como o senhor praticou um ato que está sendo analisado em um processo criminal, com vários elementos que levam à desconfiança do público, não é mesmo natural pensar que o senhor deveria responder ao processo longe da sua função, sem receber os seus vencimentos?

O que aconteceu com a opinião pública foi que inicialmente se divulgou uma versão sobre os fatos que não corresponde ao que está nos autos. E é claro, qualquer pessoa que está lendo um jornal, assistindo a uma televisão, vendo aquela reportagem, pensa que eu efetuei 12 disparos contra pessoas que apenas mexeram com a minha namorada. Isso gera indignação, claro, não tenho nem como culpar a pessoa que fica indignada com essa notícia. Mas como eu já falei, não foi isso que aconteceu. Eu entendo que, mesmo ainda não tendo sido julgado pela Justiça, eu tenho condições de continuar trabalhando e estou preparado para responder ao processo criminal. Não vejo incompatibilidade em continuar exercendo a profissão e estar respondendo a um processo-crime, mesmo porque trabalho é o que não falta lá no Ministério Público. Sobre o processo administrativo e o processo criminal, os fatos apurados em cada um são distintos. No processo criminal é apurado o fato ocorrido no dia 30 de dezembro de 2004. Se trata de um homicídio ou se trata de uma situação de legítima defesa. Caberá ao tribunal decidir. Já no processo administrativo é avaliada a minha conduta, como membro do Ministério Público, e a minha conduta pessoal, não excluindo da apreciação o fato criminal. É isso que eu queria deixar claro. São processos com objetos distintos. Eu penso que a ordem natural das coisas é eu permanecer no cargo até o julgamento do processo criminal, até porque antes desse triste episódio nunca se cogitou em pedir o meu não-vitaliciamento dentro do Ministério Público. Então eu acho que a ordem natural das coisas, até de acordo com o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade, que está na Constituição Federal, é aguardar o julgamento do processo criminal, para, se eu for condenado, que perca o cargo, como o Código Penal determina.

Se eu for absolvido, que eu seja mantido no cargo e possa exercer as minhas funções normalmente. Outra questão é que eu não estou querendo permanecer no cargo de promotor de justiça para ser julgado no Tribunal de Justiça, que é o que se denomina foro por prerrogativa de função, popularmente chamado de foro privilegiado. A competência do Tribunal de Justiça para julgar o meu caso decorre da minha postulação de continuar sendo promotor de justiça. Eu quero continuar sendo promotor de justiça porque eu acredito que tenho condições de trabalhar, como eu sempre tive, eu sempre acreditei em fazer justiça, não ser um acusador implacável, antes de tudo ser um fiscal da lei, zelar pela lei. A minha pretensão é essa. O julgamento pelo Tribunal de Justiça é uma decorrência da manutenção do meu cargo. Se a situação fosse contrária, por exemplo, eu permanecendo no cargo eu seria julgado pelo Tribunal do Júri e fora do cargo eu seria julgado pelo Tribunal de Justiça, eu ia lutar pelo meu cargo do mesmo jeito, porque eu confio na Justiça, tanto pelo Tribunal do Júri como pelo Tribunal de Justiça. Uma injustiça que eu acho que estão fazendo contra o Tribunal de Justiça é que se criou uma desconfiança quanto ao julgamento que pode ser exercido pelo tribunal. Eu quero deixar claro que o Tribunal de Justiça é um tribunal rigoroso. Muitos réus não conseguem a liberdade aqui no Tribunal de Justiça – e os advogados sabem disso –, precisam entrar com habeas corpus e obter o benefício ou no STJ ou no STF. Então, o Tribunal de Justiça é um órgão sério, isento, imparcial, e tem demonstrado isso em vários julgamentos. Ele julga conforme a prova dos autos, e é apenas isso que eu quero. Eu entendo também que os membros do Órgão Especial do Ministério Público julgaram o processo administrativo conforme as suas convicções. Não houve eventual corporativismo, tanto que a decisão pelo vitaliciamento foi por 16 a 15.

Na hipótese de o senhor ir a júri popular, o senhor continuará ou não a confiar na Justiça?

Eu confio na Justiça, tanto no TJ como no Tribunal do Júri. Mesmo porque, nos casos em que atuei no Tribunal do Júri, acredito que a justiça foi feita e que os jurados julgaram conforme a prova dos autos.

Analistas dizem que, ainda que o senhor seja absolvido, a sua permanência seria incompatível com o decoro do cargo, porque não se espera de um promotor de justiça que ele se envolva em uma situação como a da Riviera. Seria, por exemplo, como se uma grande autoridade pública do Executivo se envolvesse em um fato dessa natureza: mesmo que a autoridade fosse inocente, enfrentaria dificuldades, não só do ponto de vista da imagem, como das exigências do exercício do cargo. O que o senhor acha disso?

Eu queria ressaltar que eu me envolvi nesse episódio contra a minha vontade. Eu fiz de tudo para evitar esse resultado, eu fiz de tudo para evitar o confronto, eu fugi, mesmo estando armado, guardei a minha arma, fiz de tudo para evitar o confronto. E eu entendo que, se eu for absolvido, não há crime. Legítima defesa não é crime. Então não vejo incompatibilidade entre o exercício da minha função e a minha absolvição, no caso se vier a acontecer, por legítima defesa. Continuarei trabalhando como sempre trabalhei em busca da justiça, não apenas em busca de acusações.

Se o senhor retomar o cargo, como será possível trabalhar em Jales [cidade do interior paulista onde moram amigos da família de Diego, o jovem que morreu]?

Caso eu seja absolvido e possa voltar a trabalhar, atuarei em qualquer lugar para o qual eu seja designado. Acho que, com o tempo, com as pessoas acompanhando o meu trabalho, voltarei a conquistar o meu espaço.

Assim mesmo, os jornais vão se referir a uma absolvição como mais um caso clássico de impunidade...

Parte da imprensa só vem noticiando o meu caso como exemplo de impunidade. Eu não consigo entender como se pode falar em impunidade sem eu ter sido julgado. No caso de eu ser absolvido e retornar ao trabalho, acredito que as pessoas em geral devem confiar nas decisões proferidas pelas instituições. Esse descrédito em relação às instituições é nocivo à democracia, mas, enfim, eu continuo acreditando que um dia a maioria da imprensa conhecerá a realidade dos autos e entenderá que a decisão de uma eventual absolvição foi isenta.

Há casos de impunidade que contrariam a noção de solidez das nossas instituições democráticas...

É difícil pra mim comentar outro caso em que aparentemente houve impunidade sem ter o conhecimento dos autos. Acredito que pode até haver alguns casos de impunidade, mas de um modo geral as instituições constituídas, como a polícia, o Ministério Público e o Poder Judiciário, têm funcionado bem.

Mas há uma percepção de que a Justiça brasileira persegue os pobres e privilegia os ricos e poderosos...

Como um dia já afirmou o excelentíssimo senhor ministro Marco Aurélio Mello, nós devemos apreciar fatos e não pessoas, independentemente da capa do processo. Quando eu estava trabalhando, as pessoas que faziam jus a um benefício legal eram beneficiadas, independentemente de ser ricas ou pobres. O que ocorre é que os casos que envolvem pessoas de maior poder aquisitivo se tornam emblemáticos, e quando elas conseguem obter algum benefício legal, surge na população e na imprensa a sensação de que foram indevidamente beneficiadas apenas por serem mais abastadas. Em contrapartida, quando um réu pobre obtém idêntico benefício, num caso semelhante, tal fato não é divulgado.

Voltando à cobertura jornalística, como foi a sua relação com os jornalistas? Não houve realmente quem tenha se interessado pelo processo? Há quem diga que o senhor não queria falar...
Não, pelo contrário, eu sempre quis dar entrevista. Só que aconteceram fatos que me assustaram. Em várias entrevistas com os meus advogados, eu me recordo que eles levavam os autos, mostravam os autos aos jornalistas, depoimentos, laudos, e quando o programa era apresentado na televisão, isso não era mostrado, nenhum depoimento. É claro que eu não podia me sentir à vontade para dar entrevista, diante desse contexto. Rezei muito para que um dia um jornalista viesse expor os fatos como aconteceram, expor o que estava no processo, colocar os depoimentos, os laudos, é só isso que eu sempre pedi. Eu não agüentava mais ser massacrado com versões que não correspondiam ao que estava nos autos. Isso é um sofrimento também. Eu sei que tem muita gente sofrendo com isso, mas essa dor moral machuca bastante também. Você está convicto de que agiu em legítima defesa, pelo menos na minha opinião, e assistir a versões que não correspondem à realidade dos autos... Isso realmente incomoda muito. Eu nunca omiti os autos de ninguém. Pelo contrário, sempre, quando os jornalistas me ligam, eu falo: ‘O processo criminal é público, ao contrário do processo administrativo. Ele contém todos os depoimentos. Se o senhor quiser consultar antes de fazer a entrevista...’ Mas parece que poucas pessoas têm interesse em ir atrás do processo, talvez pelo volume, ou pela pressa de dar uma outra versão dos fatos, que é mais rápido... Realmente eu não sei o que acontece.
O senhor se referiu à televisão. Repórteres de jornal também agiram assim?

Infelizmente, a maioria da imprensa. Parte da imprensa parece que às vezes age mais por impulso do que aquele objetivo de descobrir o que realmente aconteceu.

O senhor não deu entrevista, mas os seus advogados, sim. O senhor tem conhecimento da reação dos jornalistas ao ter contato com a versão da defesa?

O que eu posso dizer é que sei que muitos ficam impressionados ao ler os depoimentos. Mas infelizmente, ao mesmo tempo, acabam não divulgando os depoimentos. Até hoje não consegui entender o motivo disso.
O senhor se considera marcado pela sociedade como um assassino?

Ainda que eu seja absolvido, é claro que as pessoas sempre vão associar o meu nome como o do promotor envolvido nesse episódio. Não obstante, eu tenho recebido muito apoio de muita gente. Inclusive, após a divulgação das alegações finais, que continham depoimentos do processo, eu recebi e-mails de pessoas que eu não conheço e que acabaram descobrindo o meu e-mail, meus pais recebem cartas, também de pessoas que a gente não conhece, manifestando apoio. Muitos até dizem que mudaram de opinião, após tomarem conhecimento do que estava nos autos, e isso me dá uma força que eu não tenho nem como explicar. Eu seria injusto se dissesse o nome de cada uma dessas pessoas, porque eu iria me esquecer de alguém, porque foram muitas. Não só essas pessoas, como no dia-a-dia. Às vezes eu vou no posto de gasolina, algum frentista que eu não conheço vem me dar apoio, fala que sabe que como os fatos ocorreram. Isso é até algo que eu não esperava...
Onde o senhor acha que o frentista conseguiu a informação?

Acredito que pela internet. A internet é um meio que hoje está ao alcance de um número maior de pessoas. Há depoimentos nos sites, e isso é muito bom, porque é uma luta difícil. Ainda que seja um meio que divulga muita informação, é uma luta desleal contra a televisão, por exemplo. Mas cada uma dessas pessoas que vem me apoiar vale muito. Eu não considero o número de pessoas que estão me apoiando. Eu considero uma pessoa que vem ali me dar apoio, que sabe o que aconteceu, mais pela qualidade da informação que ela teve, e isso me motiva muito.

O senhor tem recebido ofensas por causa da outra versão?

Por incrível que pareça, isso nunca aconteceu.

Nunca?

Nunca. Eu agradeço a Deus todos os dias por isso. Eu, desde o início, logo que cheguei em casa, depois que eu estava preso, eu tinha esse receio, mais de uma semana sem sair de casa, de sair na rua e ser ofendido. Não sei se é uma providência divina, mas eu acabo encontrando no meu caminho só pessoas que estão ao meu lado, que conhecem o que aconteceu de verdade. Isso eu só tenho a agradecer, não tenho nem palavras para falar.

Em determinado momento, houve, por parte dos familiares e amigos das vítimas, várias manifestações. A sua mãe também acabou indo aos meios de comunicação. Por que se tomou essa decisão?

Essa na verdade foi uma decisão dela e dos meus advogados. Eu achei importante as pessoas conhecerem o que estava se passando também na minha família. Eu não sou um monstro, não sou insensível, meus pais também, eles sofrem bastante, eles não são da área jurídica. Por isso eles sofrem ainda mais. Infelizmente, tem hora que eu queria que esse sofrimento todo ficasse só comigo, mas não tem como. Os familiares acabam sofrendo, os amigos... Muita angústia. Mas acho importante as pessoas tomarem conhecimento do outro lado, pelo menos em parte, dessa situação.

Cabeça de jornalista é parecida com cabeça de promotor: em princípio, ambos privilegiam a acusação e não gostam muito de defender quem quer que seja. Não explicaria determinados abusos cometidos pela mídia?

O trabalho do promotor e do jornalista tem uma semelhança. Mas antes de atacar alguém deve-se buscar a verdade dos acontecimentos, não se basear em boatos. O promotor de justiça, ao contrário do que a população pensa, não é um acusador implacável. Antes de exercer o direito de acusar, é um fiscal da lei e da Constituição. Por isso, pode pedir a absolvição dos réus, não é obrigatório pedir a condenação dos acusados.

O senhor pedia absolvição?

Com certeza, e isso me dá tanta satisfação quanto me dava uma condenação. Por exemplo, um réu estava preso havia dois anos em Mairiporã. As provas em princípio eram no sentido da condenação, mas analisando o caso com mais profundidade pedi a absolvição no Tribunal do Júri. Lembro que ele saiu chorando, esse júri foi um dos que mais marcaram a minha carreira, porque eu vi que estava fazendo justiça. Eu estava preocupado em pedir a absolvição porque no início, aparentemente, havia indícios, mas alguns detalhes conduziam à inocência. Qual não foi a minha surpresa quando, após pedir a absolvição, que foi unânime pelos jurados, a juíza e os advogados subscreveram um ofício ao corregedor-geral do MP elogiando a minha atuação...

O que o senhor pensa sobre a decisão do Conselho Nacional do Ministério Público de suspendê-lo liminarmente com base em notícias?

Eu respeito a posição do Conselho, embora não concorde. Agora cabe a mim exercer o meu direito de defesa no Conselho.

O que o senhor tem a dizer aos jornalistas que estão cobrindo o seu caso?

Respeito a profissão de jornalista. É importante para a democracia. Só espero que ajam com isenção e que, se possível, leiam o processo.

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O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)