
Uma Lei que pegou?
Diz a tradição popular brasileira que tem lei que pega e lei que não pega. Pegar ou não pegar remete, antes de tudo, a saber se o novo regramento é incorporado aos códigos de conduta da sociedade ou não. Nesse sentido, a "Maria da Penha" é vitoriosa, ela pegou.
A questão invadiu o imaginário social. Outro dia, uma menina de nove anos, aluna da rede pública, perseguida por um menino que a ameaçava, reagiu: "Cuidado, vou te botar na Lei Maria da Penha!". Não há exemplo melhor do quanto essa lei penetrou na dimensão do simbólico no tecido social do país. Foi estabelecida a regra moral quanto à violência de gênero: a Lei Maria da Penha é a regra.
Ao celebrarmos hoje o primeiro aniversário da lei, temos um imenso horizonte de desafios e dificuldades pela frente, mas uma rica e inédita experiência -e cabe a todos avaliá-la. Desafios e dificuldades, aliás, historicamente previsíveis, pois esse tipo de violência se assenta em uma estrutura social ainda machista e patriarcal.
Os desafios, porém, são tão grandes quanto o patrimônio conquistado até aqui -que não é pouco. Mas poucas foram as iniciativas no âmbito dos Judiciários estaduais para criar os Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, previstos na lei. Cabe ressaltar que a sua criação, por força da Constituição e da estrutura federativa do Estado brasileiro, está corretamente colocada no texto legal e muito depende da pressão social e da sensibilidade dos Tribunais de Justiça estaduais.
Num esforço de monitorar a implementação da lei, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) demandou informações estatísticas aos TJs de todos os Estados.
O resultado alcançado até agora nos permite afirmar, a partir do retorno de 50% das informações solicitadas, que é desigual a implementação da lei no país. A região Centro-Oeste (CO), por exemplo, instaurou 3.501 processos criminais, enquanto o Sudeste (SE), apenas 2.994. Em relação às medidas protetivas de urgência, foram 1.723 (CO), 1.632 (Sul) e 1.207 (SE). Quanto às prisões em flagrante, foram 256 (Sul) contra 86 (SE). Por isso, é no mínimo prematuro afirmar que diminuiu ou aumentou a incidência do fenômeno, como também é impossível determinar as razões pelas quais em algumas cidades aumentou ou diminuiu o número de ocorrências/denúncias.
Estão as mulheres mais cautelosas para denunciar? Ou a nova lei teria inibido os homens agressores com o fim da sensação de impunidade? Ou ambas as possibilidades? Os sentimentos de homens e mulheres que vivem o ciclo da violência são ambíguos. Compartilham afeto e conflito. As mulheres, maiores vítimas, dispensam julgamentos sobre covardias ou valentias. Precisam, sim, que o Estado lhes assegure o cumprimento de leis, como a nossa Maria da Penha.
Para apoiar a implementação da lei, bem como para enfrentar a violência contra a mulher, o governo vai investir R$ 1 bilhão, entre 2008 e 2011, em ações coordenadas pela SPM e diversos ministérios. Entre elas, destacam-se a construção, a reforma e o reaparelhamento de mais de 700 serviços especializados de atendimento à mulher (delegacias, defensorias etc.), a capacitação de 50 mil policiais e 120 mil profissionais de educação, além de campanhas educativas e culturais de prevenção.
Mas é importante reafirmar, mais uma vez, a imperiosa necessidade da união de esforços entre todas as esferas e instâncias de poder e da sociedade para eliminar a violência entre nós.
Por fim, para celebrar o primeiro ano de vigência da lei, fica o conselho cantado em samba por Alcione: "Comigo não, violão (...) Se tentar me bater/ Vai se arrepender (...) Porque vai ficar quente a/ chapa (...) Seu moço, se me der um tapa/ Da dona "Maria da Penha'/ você não escapa".
Por NILCÉA FREIRE, 55, médica, é ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Foi reitora da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) de 2000 a 2003.
NÃO
Um ano sem festa
A Lei Maria da Penha foi recebida com grande entusiasmo -com estardalhaço, até. Veio para reverter uma triste realidade: o absoluto descaso para com a violência doméstica. Sem dúvida, o crime mais praticado e menos punido no país. Por isso, não é exagero dizer que a desatenção da sociedade, do Estado e da Justiça tornou invisível a agressão contra a mulher.
A violência doméstica nem sequer dispõe de um tipo penal autônomo e, mesmo hoje, enseja singelo aumento de pena. Apenas à lesão corporal é imposta pena mais severa, quando o agressor mantém vínculo de convivência com a vítima ou se prevalece da existência de relações domésticas, coabitação ou hospitalidade.
Ante a quantidade da pena, a lesão corporal leve era considerada delito de pequeno potencial ofensivo e acabava nos juizados especiais. As vítimas eram forçadas a desistir; os agressores podiam fazer transação penal; e a condenação, quando havia, de modo geral, não passava da imposição do pagamento de cestas básicas.
Para dar um basta a tudo isso é que a Lei Maria da Penha excluiu a violência doméstica do âmbito da Lei dos Juizados Especiais, proibiu a pena de multa e entrega de cestas básicas e, em muito boa hora, criou os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
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