A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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19 de agosto de 2007

Parado no tempo: Judiciário vive século XXI com pensamento medieval


Há dias, a imprensa dedicou parte do seu tempo para criticar a decisão de um juiz do Trabalho que adiou uma audiência porque o trabalhador reclamante calçava chinelos, sob o fundamento de que o desleixo da parte em relação à indumentária atentava contra a dignidade da Justiça.

Ainda que passível de crítica a postura do magistrado no caso relatado, melhor seria extrair do episódio algumas lições e reflexões sobre o Judiciário que temos hoje.

Vivemos um período de grande desapontamento da sociedade com as nossas instituições. Os múltiplos episódios de corrupção e descaso com a coisa pública têm provocado em todos os setores sociais uma enorme indignação. E isso se torna ainda mais grave quando esse sentimento se estende ao Judiciário, que é, e precisa ser, o grande esteio e guardião da cidadania.

Mas certamente a insatisfação da sociedade com o Judiciário não reside apenas nos casos de corrupção, felizmente ainda isolados. O descrédito que se percebe na instituição decorre principalmente da sua incapacidade de oferecer respostas às necessidades e anseios dos cidadãos.

E aí poderíamos debulhar um rosário de problemas que sequer ousaríamos discutir nesse singelo artigo, cujo objetivo é apenas o de tentar trazer reflexões sobre alguns aspectos concretos, com os quais nós, juízes, temos uma estreita cumplicidade.

Em pleno século XXI, integramos ainda um Poder Judiciário de pensamento medieval, que procura se impor perante a sociedade pela imponência das “cortes” e pelas vestes talares dos seus magistrados, descuidando-se do cumprimento eficiente de seu papel constitucional de salvaguarda da Justiça, como se o respeito viesse da aparência de poder e não do resultado do trabalho.

Já se formou um consenso diante de uma realidade incomodante: o Judiciário não funciona. Nenhum cidadão se sente estimulado a buscar a Justiça, porque nela já ingressa com a certeza de que será sucumbente, ainda que ao final vencedor na demanda.

A morosidade dos processos judiciais é uma praga que nos condena, frustrando os cidadãos que apelam ao Judiciário na esperança de obter uma reparação justa e adequada pelos direitos lesados. E justiça que tarda falha.

É preciso urgentemente repensar essa estrutura pesada e excessivamente hierarquizada do Poder Judiciário. O processo tem um caminho longo e perverso. Atravessa três ou quatro instâncias decisórias, quase sempre para concluir o óbvio: o devedor tem que pagar ao credor.
E aí temos as nossas contradições internas, frutos, como já dito, dessa cultura medieval que carregamos. A importância do juiz, no olhar míope do Judiciário, cresce na mesma medida em que se eleva a instância.

Essa falsa concepção de importância que se cultua revela-se não apenas nas reverências exigidas, mas principalmente, o que é mais grave, na própria aplicação de recursos, que se reflete, ao fim e ao cabo, na estrutura de trabalho oferecida.

Ora, o primeiro grau é a grande porta de entrada do Judiciário, onde juiz e cidadão se encontram. É lá que as decisões podem ser realmente construídas com razão e sensibilidade, ingredientes essenciais para as melhores soluções.

Mas o que temos? Primeiras instâncias desprestigiadas e tribunais cada vez mais imponentes e equipados. Uma verdadeira inversão de valores, um flagrante contra-senso. Aonde se decide de modo definitivo mais de 70% dos processos judiciais, menos recursos financeiros são alocados e, conseqüentemente, é onde se têm as piores condições de trabalho.

Tudo isso contribui para a morosidade do Judiciário. Evidentemente que não é só isso. Poder-se-ia ainda falar de tantos outros entraves da celeridade, como o formalismo processual, o excesso de recursos, o número insuficiente de juízes, etc.. Mas o que nos faz lamentar é que algumas das questões ora pontuadas dependem apenas de uma vontade política interna, de uma mudança de mentalidade dentro do próprio judiciário em relação às suas prioridades.

Precisamos reduzir a estrutura do Poder Judiciário, que é grande, pesada e ineficiente. E isso poderia ser iniciado com uma maior capilarização da primeira instância e com a diminuição das cúpulas.

Escreveu Milton Nascimento, na sua canção Bailes da Vida, que “todo artista tem de ir onde o povo está”. E assim tem que ser também a Justiça.

Mas é engano pensar que o anseio da sociedade é apenas por um Judiciário que decida rápido. Espera-se dele que decida bem.

Não é possível imaginar que se possa bem aplicar o direito sem uma clara percepção da realidade social. Os códigos apenas amontoam textos frios, que reclamam as mãos e a inteligência do aplicador para fazer deles a concretização do ideal de Justiça.

Não basta saber a lei, é preciso conhecer o mundo.

Nesse contexto, merece louvor iniciativas oriundas do movimento associativo da magistratura como a do projeto Cidadania e Justiça, que retira o juiz do gabinete e o coloca frente a frente com o cidadão, sobretudo com aquele que mais precisa da justiça, porque mais explorado, mais fragilizado, enfim, mais carente de dignidade.

Dentro de uma sociedade desigual, injusta, que concentra tanta riqueza nas mãos de tão poucos, torna-se cada vez mais necessário que o juiz assuma o seu papel de agente de transformação dessa realidade. E para isso não precisa se tornar um justiceiro, porque dispomos dos instrumentos jurídicos necessários que nos permitem atuar em favor da construção da cidadania, da preservação dos valores sociais do trabalho e da dignidade da pessoa humana, que são os pilares democráticos nos quais se fundam a nossa República.

Certamente que não tem esse artigo a pretensão de fazer um diagnóstico dos problemas do Poder Judiciário, já que são inúmeras as facetas que os envolvem. Entretanto, existe uma realidade concreta com a qual nos deparamos todos os dias, e que certamente nos incomoda: o modelo de Judiciário que temos hoje não funciona.

Precisamos urgentemente deixar de lado as preocupações meramente corporativas e iniciarmos um debate público sobre um novo judiciário: menor, menos oligárquico, eficiente, democrático e mais perto do cidadão.

http://www.conjur.com.br/ - por Francisco Luciano de Azevedo Frota, juiz da 3ª Vara do Trabalho de Brasília.

Um comentário:

Anônimo disse...

Felizmente, Dr. Francisco,existem juízes com essa sua visão do Judiciário e que ousam se expressar.Espero que mais vozes se unam a sua e trabalhem para mudar essa concepção anacrônica de um Poder já tão desacreditado pela população.

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O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)