A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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20 de agosto de 2007

Argumento de fuga: a última carta do Diabo

Faz alguns anos que um amigo me presenteou com o livro As Cartas de Escrutopo, um livro de êxito mundial, hoje à venda no Brasil com o título Cartas do Diabo a um Aprendiz. A seu tempo, li a obra e encantei-me com ela. O autor britânico, C.S. Lewis, fizera uma excelente teoria, epistolada, com um método de construção original: um diabo velho escrevia cartas a um diabo novo. Chamava a Deus de Inimigo; e de paciente aquele homem que estava sob os (maus) cuidados do diabo aprendiz. O que não sabia é que essas cartas eram reais, e continuam a ser escritas pelo mesmo diabo velho, a um destinatário diferente. Em outro contexto, mais avançado, mas existem. Até o momento, consegui interceptar uma delas, que, por tratar de retórica, e por fazer referência a uma obra que conheço, tomo a liberdade de transcrever nesta coluna:

“Meu querido Calamaro,

Primeiramente, tenho de dar-te os parabéns por suas ações nesse país-continente, tão próximo do Inimigo, porém com um campo de trabalho tão vasto para ti. Noto que tuas ações têm sido perfeitas, ou quase perfeitas: há falhas absolutamente perdoáveis (figura de linguagem, porque nós nunca perdoamos), para um aprendiz. O que desejo afirmar mais exatamente é que tuas ações, que ocorrem pelos teus pacientes mais próximos, estão muito bem arquitetadas, mas isso não basta. Ações devem ser acompanhadas de um discurso próprio, caso contrário elas não repercutem o suficiente a nosso favor, ou podem reverter-se contra nós. É imprescindível buscar não só o ato ruim, mas lograr sua impunidade.

Por isso, nesta carta fixar-me-ei na retórica que deves adotar. Ela necessita alguns reparos; como já lhe alertei anteriormente, há ordens de nosso Alto Comando para que não apareçamos como demônios, para que sejamos cada vez mais discretos. Essa é nossa nova estratégia: os homens devem pensar que nós não existimos. Aí então seremos cada vez mais fortes.

Digo-lhe essas palavras porque é urgente que, diante dos fatos que com muita precisão fizeste causar, desenvolva-se outra retórica. Preste atenção: na estratégia antiga, tu inflavas teus pacientes a um discurso combativo e direto. Eu gostava disso. Era só ter visão um tanto mais apurada - e eu a tenho – para notar tua presença no discurso incisivo do teu paciente: os olhos inflamados, rubor, a voz rouca, os gestos acusatórios... parecia que tu, Calamaro, ia sair do corpo de seu paciente, mostrando tua face avermelhada, chifres e rabo. A cena seria hilária, mas, se o fazes, arruínas todo nosso Grande Plano. E, para os que cometem esse equívoco, a punição do Alto Comando é severa, não necessito alertar-te.

A técnica retórica agora é outra. Depois que seu paciente faz uma má ação, é hora de fugir das responsabilidades. Não é hora de atacar, pois a reação ao ataque pode ser incontrolável. Seu discurso deve-se transformar em uma esponja, em um amortecedor. E assim a técnica é bem outra. Um livro de argumentação jurídica, que circula nesse país-continente, chama esse discurso que quero ensinar-te de argumento de fuga. O autor do livro passou perto de uma boa teoria, mas é um jejuno imbecil. Lê meus conselhos que seguem e aproveita que estás no país da impunidade, para aprender a técnica que chamo de cama-de-gato – que nada mais é que o argumento de fuga, melhorado. Como se constrói um discurso para livrar a responsabilidade que pesa a teu paciente. Funciona sempre: no tribunal, na família, e principalmente na política. Mas é diferente de o que estás acostumado. Acompanha:

I. Em primeiro lugar, logo após o ato danoso de que teu paciente é responsável, faz com que ele desapareça. A imagem de teu paciente deve evitar ao máximo a exposição, caso contrário ela é imediatamente associada ao ato danoso. Foge e ganha tempo, pois, além de ser parte da retórica, sempre corre a nosso favor. Se tiveres dificuldade, pergunta a qualquer advogado amigo teu como se ganha tempo, e ele te advertirá: um atestado médico sempre funciona, mesmo que se refira a uma enfermidade banal. Se for um caso forense, junte o atestado no processo, e a audiência demorará um ano para ser remarcada. Se for um caso político, tenta que uma cirurgia de emergência afaste teu paciente dos questionamentos naturais decorrentes do ato danoso. E não temas: a covardia sempre foi nossa estratégia.

II. E nossa cama-de-gato, chamada pelo imbecil de argumento de fuga, segue com uma técnica nodal: ao aparecer teu paciente em público, que nunca assuma culpa. Aliás, que nem fale dela. No seu pronunciamento – seja no interrogatório ou na fala aos súditos – que ele faça “bom” uso das palavras do Inimigo: que demonstre carinho, pena, condolência, solidariedade aos afetados pelos atos danosos. Funciona sempre. Se for inevitável a acusação (consulta bons advogados antes de fazer teu paciente assumir qualquer ato), que fale em arrependimento e perdão. É responsabilidade tua amolecer corações, e para isso tuas palavras, na boca de quem queiras. Nada mais distante do Inimigo que um coração emocionado. Palavras fazem milagres (outra figura de linguagem).

III. Na oratória, demonstra muita calma. Não enfrentes. Veja um advogado no júri: seus gritos, berros, valentia momentânea, revertem-se contra si próprio. A calma não implica falta de segurança, jamais te esqueças disso. Fala com pausas e mansamente, não deixes tua voz rouca aparecer. Amacia. Por isso a imagem da cama de gato: teu discurso, quando teu paciente é culpado de verdade, deve parecer confortável e envolvente. Para isso é necessário muita expressão corporal, suave. Se possível, deixa teu paciente com os olhos lacrimejados, com aquela luminosidade que parece que o globo ocular fora untado em parafina, brilho triste. Nada mais envolvente.

IV. Por último, faz com que teu paciente sugira – mas só sugira, por Deus! (desculpe) – responsabilidades alheias. Dilui a culpa até que, ao menos em discurso, nada reste. Sempre haverá outros culpados: o pai da vítima que era mau e rancoroso, o fabricante da arma que dá o tiro, a empresa que não cuida de seu equipamentos e motores etc. Ah, um último conselho: quando essa culpa alheia aparecer, não comemores em público. Nossa linguagem, vê só, parece chula aos amigos do Inimigo. E cuidado: o Inimigo tem olhos e câmeras apontados para todos os lados.

Muito mais poderia eu falar-te sobre nossa nova técnica retórica. Mas tenho outros afazeres. Lê aquele trecho do “argumento de fuga”, do livreco que te indiquei. E mês próximo te ensino outras técnicas. Se me permites a imagem: usa essa argumentação, e teus pacientes serão como panela de teflon: nada grudará neles.

Teu carinhoso tutor,

Escrutopo”

Da minha parte, espero conseguir interceptar outra carta dessas. Ou não, porque suspeito que ela me dirige algumas ofensas.


Por Víctor Gabriel Rodríguez Mestre e doutorando em Direito penal pela USP, autor de Argumentação Jurídica: Técnicas de Persuasão e Lógica Informal, com 4ª Edição pela Editora Martins Fontes, professor no Unibero e na Escola Superior de Advocacia. http://www.cartaforense.com.br/

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