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10 de julho de 2007


Prisão, tratados de direitos humanos e antinomias com a lei e Constituição

Os tratados de direitos humanos podem ser (ou são) incorporados no direito interno brasileiro: (a) como Emenda Constitucional (Constituição Federal, artigo 5º, parágrafo 3º) ou (b) como direito supralegal (voto do ministro Gilmar Mendes no Recurso Extraordinário 466.343-SP) ou (c) como direito constitucional (essa é a posição doutrinária fundada no artigo 5º, parágrafo 2º, da CF) ou, por último, (d) como direito ordinário (antiga posição da jurisprudência do STF).

A primeira possibilidade vem disciplinada no parágrafo 3º, do artigo 5º, da CF, inserido pela Emenda Constitucional 45, que diz: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.

Mas, até agora, nenhum tratado de direitos humanos foi introduzido no Brasil de acordo com o procedimento legislativo mencionado. Ou seja: no Brasil nenhum tratado (ainda) conta com status de emenda constitucional.A segunda assertiva foi sustentada no voto supracitado do ministro Gilmar Mendes (RE 466.343-SP, relator ministro Cezar Peluso, j. 22 de novembro de 2006, ainda não concluído), que foi reiterado no HC 90.172-SP, Segunda Turma, votação unânime, j. 5 de junho de 2007, nos seguintes termos:

“A Turma deferiu habeas corpus preventivo para assegurar ao paciente o direito de permanecer em liberdade até o julgamento do mérito, pelo STJ, de idêntica medida. No caso, ajuizada ação de execução, o paciente aceitara o encargo de depositário judicial de bens que, posteriormente, foram arrematados pela credora. Ocorre que, expedido mandado de remoção, os bens não foram localizados e o paciente propusera, ante a sua fungibilidade, o pagamento parcelado do débito ou a substituição por imóvel de sua propriedade, ambos recusados pela exeqüente. Diante do descumprimento do múnus, decretara-se a prisão do paciente. Inicialmente, superou-se a aplicação do Enunciado da Súmula 691 do STF. Em seguida, asseverou-se que o tema da legitimidade da prisão civil do depositário infiel, ressalvada a hipótese excepcional do devedor de alimentos, encontra-se em discussão no plenário (RE 466343/SP, v. Informativos 449 e 450) e conta com sete votos favoráveis ao reconhecimento da inconstitucionalidade da prisão civil do alienante fiduciário e do depositário infiel. Tendo isso em conta, entendeu-se presente a plausibilidade da tese da impetração. Reiterou-se, ainda, o que afirmado no mencionado RE 466343/SP no sentido de que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal, o que torna inaplicável a legislação infraconstitucional com eles conflitantes, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação e que, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos direitos civis e políticos (artigo 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (artigo 7º, 7), não há mais base legal para a prisão civil do depositário infiel. HC 90172/SP, relator ministro Gilmar Mendes, 5 de junho 2007”.

A terceira corrente acima referida emana de um consolidado entendimento doutrinário (Flávia Piovesan, Valério Mazzuoli, Ada Pelegrini Grinover, L. F. Gomes etc.), que já conta com várias décadas de existência no nosso país. Em consonância com essa linha de pensamento há, inclusive, alguns votos no STF (HC 72.131 e 82.424, relator ministro Carlos Velloso), mas é certo que essa tese nunca foi majoritária na nossa Suprema Corte de Justiça.

A quarta posição retrata a velha e provecta jurisprudência do STF, que tradicionalmente seguia a doutrina da paridade (entre os tratados e as leis ordinárias). Ou seja: enfocava tais tratados como lei ordinária. Essa clássica jurisprudência do STF não perdeu completamente sua validade: ela ainda tem pertinência no que se relaciona com os tratados internacionais que não versam sobre direitos humanos.

O ponto comum entre as três primeiras posições citadas reside no seguinte: os Tratados de Direitos Humanos contam com status supralegal, ou seja, acham-se hierarquicamente acima do direito ordinário. Essa premissa nos parece totalmente acertada.

Acolhendo-se a doutrina mais recente do STF (a partir do RE 466.343-SP) e desde que não seja observado o procedimento do parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição Federal, conclui-se que edifício do direito passou a ter três andares: no patamar de baixo está a legalidade, no topo está a Constituição e no andar do meio encontram-se os tratados de direitos humanos.

Se o tratado ingressa no direito interno como Emenda constitucional (parágrafo 3º do artigo 5º da CF), derroga as disposições constitucionais em contrário ou, no mínimo, cria uma situação de “regra” e “exceção”. Se ele se incorpora no direito interno com o status de direito supralegal, mas ao mesmo tempo infraconstitucional, nem revoga nem é revogado pela Constituição, posto que os direitos humanos não se excluem (parágrafo 2º do artigo 5º da CF e artigo 29 da CADH). Deve sempre ser observado o direito que mais tutela a liberdade, a vida etc.

Constituição e tratados, destarte, em matéria de direitos humanos, não se chocam, ao contrário, constituem dois ordenamentos jurídicos superiores e independentes mas que se complementam. Toda legislação ordinária, desse modo, passa a se sujeitar a uma dupla compatibilidade vertical material. Estando em posição de antinomia com qualquer um deles, não vale.

Quando a lei antinômica é anterior à Constituição, dá-se o fenômeno da não-recepção (perde a validade em razão disso). Quando é posterior a ela, é inconstitucional. É vigente mas não vale. Caso a lei entre em conflito com os tratados de direitos humanos dá-se o seguinte: se anterior, é revogada ou derrogada; se posterior, não tem validade (é inválida) (veja STF, HC 88.420-SP, relator ministro Ricardo Lewandowski; ainda: STF, HC 90.172-SP, rel. Min. Gilmar Mendes).

Com base no que acaba de ser afirmado, resulta patente que não subsiste no direito brasileiro nenhuma hipótese de prisão civil relacionada com o depositário infiel. Toda legislação ordinária nesse sentido tem compatibilidade só aparente com a Constituição, mas conflita abertamente com o artigo 7º, 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Falamos em compatibilidade “aparente” com a Constituição Federal pelo seguinte: a rigor, a previsão da prisão civil de depositário na Constituição (artigo 5º, inciso LXVII) é inconstitucional por não ser razoável.

Viola o princípio da razoabilidade. No caso de alimentos, bens jurídicos muito relevantes acham-se por detrás da prisão: vida, integridade física, desenvolvimento da personalidade da pessoa (quando menor) etc. Esses bens jurídicos justificam a privação da liberdade. Uma dívida civil jamais.

por Luiz Flávio Gomes, http://www.ultimainstancia.com.br/

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