A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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19 de junho de 2007

COLABORAÇÃO PREMIADA E TRIBUNAL DO JÚRI


A Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999, ao prever hipóteses de benefícios àquele que, concorrendo para a prática de crime, presta colaboração voluntária à persecução estatal, trouxe a lume intrincado debate no meio jurídico[1]. Em especial, os arts. 13 e 14 da lei disciplinam, respectivamente, hipóteses de concessão de perdão judicial[2] e de causa especial de diminuição da pena[3]. Passado mais de um ano de sua vigência, ainda hoje há espaço para a investigação dogmática, além da discussão que traga, no âmbito pragmático, a ampliação de sua eficácia e aplicação no cotidiano forense.

A par da divergência acerca de aspectos variados do instituto, as condições elencadas nos incisos do art. 13, bem assim no caput do art. 14, ensejam dois entendimentos: necessidade de satisfação cumulativa ou alternativa. Para o presente estudo, prestigiamos a posição que sustenta ser bastante o atendimento de uma só das três condições, alternativamente[4].

Acolhida a tese alternativa, vislumbramos a aplicação da Lei nº 9.807/99 aos crimes dolosos contra a vida, cuja competência é assegurada pela CR/88 ao Tribunal do Júri. Se os jurados, em resposta aos quesitos formulados, analisando as circunstâncias e conseqüências da infração, concluírem que o acusado, sendo primário, de personalidade favorável, colaborou efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, daí resultando a identificação daqueles que concorreram para o crime, o juiz-presidente declarará extinta a punibilidade, concedendo ao réu o perdão judicial (art. 13, I). Se, não obstante a colaboração voluntária do acusado para a identificação dos demais participantes, não for tal colaboração efetiva (ausência de nexo de causalidade entre a colaboração e a identificação; ineficácia quanto ao fim pretendido pela lei), se as circunstâncias objetivas não forem favoráveis ao réu, ou ainda se este for reincidente, deverá o juiz-presidente prolatar sentença condenatória, reduzindo porém a pena aplicada, de um a dois terços (art. 14).

Por respeito aos princípios da soberania dos veredictos e do juiz natural, ao Tribunal Popular está reservada a aferição dos requisitos objetivos e subjetivos, sob pena de ofensa à Constituição Federal. Tanto a negativa de formulação de quesitos relacionados às teses que se possam extrair da lei em tela, quanto sua restrição, subtraindo-se do Conselho de Sentença o exame de qualquer das condições (objetivas ou subjetivas), caracterizam vício insanável e rendem ensejo à declaração de nulidade por ofensa aos princípios constitucionais da soberania do Júri e da plenitude da defesa[5].

A tese do perdão judicial seria desdobrada em quatro quesitos, assim redigidos: "a) o acusado colaborou efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal? b) dessa colaboração resultou a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa?[6] c) o acusado é primário? d) as circunstâncias do crime e a personalidade do acusado autorizam a concessão do perdão judicial?". A resposta negativa a qualquer dos quesitos prejudica os subseqüentes.

Eventualmente afastado o perdão judicial, negado que seja qualquer dos requisitos (art. 13, caput, I, e parágrafo único), conforme o caso, o acusado poderá beneficiar-se, ainda, da causa de diminuição de pena, que atua de forma subsidiária, por não exigir a "efetividade" da colaboração (eficácia em relação aos efeitos pretendidos pela norma), nem primariedade ou personalidade e circunstâncias favoráveis. Note-se que, desde que sustentada em plenário a tese que consubstancia o perdão judicial, negada esta, o juiz-presidente estará obrigado a indagar a respeito da causa de diminuição, formulando quesito único, nos seguintes termos: "o acusado colaborou voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime?"[7].

Na hermenêutica penal, à luz dos princípios erigidos ao patamar constitucional, deve-se privilegiar a interpretação que traduza, para o processo, a maior eficácia da norma em homenagem à ampla defesa. Em especial relevo no Tribunal do Júri, afastar a soberania do voto em restrição ao sistema de proteção das liberdades é fomentar o autoritarismo e reduzir a dignidade da pessoa humana a um enunciado pálido, sem conteúdo, meramente formal, lançado numa "folha de papel"[8].

Notas

[1] V. a respeito: Ferrajoli, Luigi. "Diritto e Ragione - Teoria del Garantismo Penale", 5ª ed., Roma-Bari, Laterza, 1998, p. 858; e Azevedo, David Teixeira de, in Boletim do IBCCRIM nº 83 - outubro/99.

[2] "Art. 13- Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a conseqüente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado: I - a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa; II- a localização da vítima com a sua integridade física preservada; III- a recuperação total ou parcial do produto do crime. Parágrafo único. A concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso".

[3] "Art. 14- O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços".

[4] Cf. JESUS, Damásio E. de, in Boletim do IBCCRIM nº 82 - setembro/99.

[5] Tivemos a oportunidade de sustentar tais teses em plenário do Júri, em 13.12.99, logo após o advento da Lei nº 9.807/99, na Comarca de Betim/MG (Processo nº 02799004306-2), em conjunto com a defensora pública Letícia Barra Vieira; teses negadas, respectivamente, por 5 votos a 2 e 4 votos a 3, portanto admitidas à quesitação pelo juiz-presidente.

[6] Nos crimes conexos submetidos a julgamento pelo Tribunal do Júri, poder-se-iam formular também os seguintes quesitos: "dessa colaboração resultou a recuperação total ou parcial do produto do crime?" (art. 13, III); "o acusado colaborou voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na recuperação total ou parcial do produto do crime?" (art. 14, caput).

[7] Nos crimes tentados (art. 14, II, CP), seria possível, em tese, invocar a causa de diminuição de pena, ainda com base no art. 14, caput, da Lei nº 9.807/99: "o acusado colaborou voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na localização da vítima com vida?".

[8] Lassale, Ferdinand. "Que es Una Constitución?", Buenos Aires, Ed. siglo veinte, 1943, p. 61, trad. W. Roces.

por RODRIGO IENNACO
Promotor de Justiça em Minas Gerais.
Mestre em Ciências Penais pela UFMG.
Professor convidado do curso de pós-graduação em Ciências Penais da UFJF.

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