A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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2 de maio de 2007

Rompendo os eixos da legalidade


O Supremo Tribunal Federal deve examinar, em breve, as primeiras propostas de súmula vinculante, instrumento que subordina imperativamente instâncias inferiores da magistratura a adotar decisões das instâncias superiores.

Ao contrário dos objetivos a que se propõem, tais súmulas contaminarão o oxigênio da atmosfera jurídica e os princípios da legalidade e da liberdade, restringirão ferozmente a independência de juízes de instâncias inferiores e aprisionarão a jurisprudência. Um retrocesso em matéria de prestação jurisdicional.

A crise do sistema judiciário não será equacionada com tais medidas. É precário considerar que os 35 milhões de processos que tramitam pelos canais do Judiciário, dos quais 15 milhões apenas em São Paulo, ganharão celeridade com a súmula vinculante.

O diagnóstico sobre a lentidão da Justiça é bem conhecido, apontando para a insuficiência de recursos humanos e materiais, as deficiências do ordenamento jurídico, o formalismo processual exagerado, a ineficiência administrativa, o precário funcionamento dos cartórios e o despreparo de parcela significativa dos operadores do direito -questões que não serão resolvidas, nem mesmo diminuídas, com as súmulas vinculantes.

As conseqüências mais drásticas da aprovação da medida se darão na esfera da própria liberdade dos juízes. A base do direito é a interpretação. Sem ela, inexiste o direito.

Portanto, a aplicação da súmula vinculante inibe o princípio da interpretação do direito, eliminando a liberdade de questionamento da lei e da própria jurisprudência e desprezando as peculiaridades de cada caso.

Magistrados terão de decidir de forma mecânica, julgando de acordo com as súmulas, impedidos de buscar fundamentação e assentar as decisões numa base sólida de interpretação.

Caso desejemos saber como o mestre Rui Barbosa defendia a independência das esferas da Justiça, basta anotar a expressão de seu célebre discurso sobre o Supremo Tribunal Federal na Constituição brasileira, em 14 de novembro de 1914, proferido no Instituto dos Advogados:

"Nenhum tribunal, no aplicar da lei, incorre, nem pode incorrer, em responsabilidade, senão quando sentencia contra as suas disposições literais ou quando se corrompe, julgando sob a influência de peita ou suborno. Postas essas duas ressalvas, que nada alteram a independência essencial ao magistrado, contra os seus erros, na interpretação dos textos que aplica, os únicos remédios existentes consistem nas formas do processo, nas franquias asseguradas à defesa das partes e, por último, nos recursos destinados a promover a reconsideração, a cassação ou a modificação das sentenças, recursos que não se interpõem da Justiça para outro poder, mas se exercitam, necessária e intransferivelmente, dentro na própria esfera judicial, de uns para outros graus da sua hierarquia".

A adoção da súmula vinculante, como lembra o professor Ronaldo Rebello de Brito Poletti, induz a um direito judicial, lastreado na jurisprudência dos tribunais, enquanto o nosso direito é processual.

Ademais, não se deve julgar exclusivamente de acordo com os precedentes, mas também de acordo com as leis, competindo ao órgão jurisdicional compor conflitos de interesse. A súmula vinculante não se justifica ante a expressão maior do direito.

Questiona-se, ainda, se o enunciado de uma súmula, que é um resumo, poderá vincular julgamentos futuros.

Por outro lado, um vínculo aos precedentes se dá em função dos fundamentos arrumados para tomar a decisão, e não por causa de simples conclusão expressa em uma súmula.

A restrição à liberdade do magistrado quer significar, ainda, o encolhimento do direito do cidadão ao devido processo legal.

Sob essa moldura, os caminhos mais largos para alcançar a tão almejada celeridade na administração da Justiça estão na ampliação da estrutura do Judiciário -comarcas, varas, juízes, tribunais-, além de ampla reforma processual e preparação mais adequada, inclusive nos quadros da advocacia. Se a questão é evitar litigância desnecessária, com a interposição de recursos sucessivos de uma instância para a outra, que se alerte o próprio Estado, este, sim, o maior litigante do país.

Sobre o mérito, estaremos substituindo tais recurso por aqueles que discutirão a aplicação da súmula vinculante, o que não desafogará a Justiça, correndo-se o risco de romper os eixos da legalidade e da liberdade.

Por LUIZ FLÁVIO BORGES D'URSO, advogado criminalista, doutor em direito penal pela USP, é presidente da OAB-SP (seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil) - Folha de São Paulo, 02/05/07.

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