Sob a premissa de que lutar pelo reconhecimento da diferença é lutar pela igualdade, as relações de gênero, sem abandonar suas especificidades, adquiriram, nos dias de hoje, uma vertebração política bem mais ampla do que a do movimento feminista dos anos sessenta, trespassando questões concretas, complexas e plurais como a luta pela terra, trabalho, moradia, educação, saúde, cultura, segurança alimentar e segurança pública.
No país varonil, inúmeras mulheres personificam essa causa: Patrícia Galvão (Pagu), a primeira entre tantas, no Brasil, a ser presa por agitação política, em 1931, mais precisamente na greve dos estivadores do Porto de Santos, numa época em que elas sequer votavam.
Bertha Lutz, nossa primeira parlamentar federal e que, em 1936, defendia a igualdade salarial, a redução da jornada de trabalho e a licença de três meses para a gestante, Olga Benário, Zuzu Angel, Mãe Menininha, Margarida Maria Alves – a trabalhadora rural assassinada na Paraíba –, as mães de Vigário Geral, da Candelária e de Cazuza, Zilda Arns, Dorothy Stang – a freira do povo –, Mãe Filhinha, Helena Grecco, Dona Ivone Lara, Marina Silva e tantas outras mulheres anônimas e sem rosto que, atoladas pela humildade do cotidiano, choram por seus filhos e filhas nos necrotérios, delegacias, penitenciárias e postos de saúde. Muito mais corajosas, não conhecem intervalos na caminhada e só descansam com a trégua inapelável e definitiva da morte.
Seus sonhos, sofrimentos e ideais nunca foram tão exigidos para forjarmos uma construção social melhor que a de hoje.
No Brasil potência econômica, como observa o Presidente Lula, a pobreza tem cara feminina e a discriminação se torna mais acentuada quando se adota como parâmetro a mulher negra e jovem, mais vulnerável socialmente, o que impõe necessariamente a formulação e a execução de políticas públicas transversais de raça e gênero, como substantivos praticamente interdependentes.
Segundo revela a pesquisa Retrato das Desigualdades – Gênero e Raça, desenvolvida pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem) e pelo IPEA, em 2005, a renda mensal das mulheres negras, com base na PNAD-2003 (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio, do IBGE), é de R$ 279,80, contra R$428,30 para os homens negros que, por sua vez, é menos da metade do que a dos homens brancos (R$ 931,10). Nessa mesma linha, 21% das mulheres negras são empregadas domésticas e apenas 23% delas têm carteira assinada, contra 12,5% das mulheres brancas que são domésticas, 30% delas com registro na carteira de trabalho.
Conforme ainda com os dados extraídos, 46% das mulheres negras nunca passaram por nenhum exame de mama, não constituindo esse segmento (mulher e negra), definitivamente, “minoria”, pois representa mais da metade da população brasileira.
Por sua vez, a invisibilidade da violência doméstica e a ineficácia da resposta do aparato judicial dificultam o reconhecimento das mulheres como sujeitos de direito a uma vida livre de violência em seu próprio ambiente, tornando-se necessários indicadores seguros que meçam o nível de resolutividade e o impacto na vida das mulheres que buscam a intervenção do Poder Judiciário, do Ministério Público e das demais funções essenciais à administração da justiça.
Porém, para usarmos a expressão de Walter Benjamin, “nem Versailles é tão grande nem a eternidade tão longa”. A lição que fica da luta feminina – como de qualquer outra luta social – é que somente no entrecruzamento entre o ativismo político e a esfera pública se realizará um dia, como destino comum, o velho sonho da concretização do direito à igualdade.
No horizonte do real, a política é o tributo que a virtude paga pelo interesse, como meio da realização humana. Combinar o interesse com a virtude: eis o dilema multimilenar da política, que se reflete também na causa feminista.
“O beco para a liberdade se fazer nas toesas desse sertão”, para ficarmos, aqui, com a fala do jagunço Riobaldo, na expressão literária central de Guimarães Rosa.
Afinal, certamente, não viemos do inferno.
E viva Diadorim, “que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor...” (GSV:565). Estranha condição.
Nenhum comentário:
Postar um comentário