A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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17 de março de 2007

DIREITO PENAL ESTADUAL


Nas últimas semanas, em razão do assassinato do pequeno João Hélio, no Rio de Janeiro, vêm sendo discutidas propostas de “combate à criminalidade”, entre elas a transferência da competência legislativa penal aos Estados, conforme sugeriu o Governador do Estado do Rio de Janeiro.

O que se pretende, pelo visto, é que cada Estado possua seu próprio Código Penal, à semelhança do sistema federativo dos Estados Unidos, de modo a permitir, em tese, melhor adequação da legislação penal à realidade social de cada Estado.

Como se sabe, a Constituição brasileira de 1988 prevê, basicamente, três espécies de competências legislativas:

a) exclusivas: atribuídas, com exclusividade, a um só ente federativo (por exemplo, a competência do Município para legislar sobre assunto de interesse local – art. 30, I, da CF);

b) privativas: atribuídas à União, mas passíveis de delegação aos Estados e ao Distrito Federal, por lei complementar, para a disciplina de questões locais específicas (art. 22, caput, c. c. o art. 22, par. ún., da CF);

c) concorrentes: atribuídas de maneira paralela à União, aos Estados e ao Distrito Federal. Nas matérias submetidas a essa espécie de competência, em regra, a União deverá editar normas gerais, e os Estados e o Distrito Federal, normas específicas (art. 24 da CF).

A competência para legislar sobre Direito Penal está inserida na segunda espécie. É, portanto, competência privativa da União legislar sobre Direito Penal, conforme expressamente dispõe o art. 22, I, da CF.

Assim, mesmo no sistema vigente, é possível, em tese, que tenhamos normas penais estaduais, desde que estejam presentes dois requisitos:

1 – Delegação da União para o Estado ou Distrito Federal por lei complementar federal.

2 – Existência de uma questão específica a ser disciplinada pelo Estado ou pelo Distrito Federal.

Embora exista essa possibilidade teórica no plano jurídico-constitucional, não se tem notícia do exercício dessa faculdade por um singelo motivo: a delegação da competência da União aos Estados depende de lei complementar, enquanto a elaboração da norma penal pelo Congresso Nacional exige apenas lei ordinária.

Em suma, é muito mais trabalhoso para o Congresso delegar a competência do que legislar diretamente sobre a matéria, sem mencionar que a delegação ao Estado evidentemente importaria na perda do controle da União sobre o conteúdo da norma a ser elaborada pelo Estado.

Por esses motivos, o sistema de competência privativa, na prática, concede à União o exercício pleno do poder legiferante em matéria penal.

Essa concentração de poderes na União é uma característica do federalismo brasileiro e decorre da formação histórica de nosso Estado, que nasceu unitário, desmembrou-se em províncias e, depois, em Estados-membros.

É por isso que, tradicionalmente, as competências da União no Brasil são muito mais amplas que as estaduais e quase todo o Direito brasileiro (inclusive o Penal) é federal.

Exatamente o fenômeno oposto ocorreu nos Estados Unidos da América, onde a União foi gerada pela aliança de Estados independentes, razão pela qual quase todo o Direito norte-americano é estadual (inclusive o Penal).

Afora a absoluta dissonância com a formação histórica do Estado brasileiro, a transferência da competência legislativa penal aos Estados gera, a nosso ver, os seguintes problemas:

1 – não haveria obrigatoriamente maior eficácia na aplicação da norma penal (o problema está na aplicação da norma, e não na elaboração da lei);

2 – seria criado sério desequilíbrio federativo ao se estabelecerem normas diferentes, com penas diferentes, regulando a mesma conduta em vários Estados. Isso poderia gerar “rotas criminosas” pelos Estados onde a pena fosse mais leve, situação semelhante à da “guerra fiscal” entre os Estados, voltada para o Direito Penal;

3 – submeteria a legislação penal à situação político-social regional. A ausência de controle da União permitiria, em tese, que a norma fosse produzida para se adaptar a interesses oligárquicos regionais.

Por André Figaro, procurador do Estado/SP, in www.damasio.com.br.

Um comentário:

Anônimo disse...

Caros leitores, sobre o tema, colo artigo de Guilherme Nucci:

A Regionalização do Processo Penal

Inaugurando a nossa participação no espaço reservado aos temas de Processo Penal no conceituado periódico Carta Forense, muito pensamos acerca do primeiro tema a ser desenvolvido. Poderíamos tecer considerações em relação a qualquer assunto, constante do Código de Processo Penal. Qual seria o primordial? Chegamos à conclusão de não haver um tema específico principal, porém nos surgiu à mente um debate que propusemos nas últimas edições dos nossos Código de Processo Penal comentado e Manual de processo penal e execução penal. Seria viável ressuscitarmos a regionalização do processo, particularmente em relação ao processo penal?

Abrimos, então, a nossa troca de idéias com essa questão. Relembramos, para tanto, as nossas andanças por várias regiões do imenso Brasil, em congressos, encontros em faculdades de direito e conferências proferidas, tanto nas Escolas de Aperfeiçoamento das carreiras jurídicas, como em cursos de pós-graduação. Em muitos locais, ouvimos relatos surpreendentes de operadores do Direito, particularmente na região norte do país, onde as dimensões territoriais são realmente extremadas.

Como fazer uma citação de maneira célere no Estado do Amazonas, por precatória, expedida em Manaus para ser cumprida em longínqua cidade do interior? Como vencer a época da seca dos rios (meio de transporte comum na região)? Se o réu estiver preso na Capital, como atingir a rápida finalização da instrução, caso haja dependência da prova a ser produzida em outra Comarca? Muito se debate, atualmente, na doutrina e na jurisprudência, em relação a qual seria a razoável e justa duração para a instrução criminal, considerando-se tanto as situações de réus presos, como também o aspecto ligado à prescrição. As soluções, para um país de dimensões continentais como o Brasil, podem ser padronizadas? Seria este o ideal ou a melhor solução estaria na busca de propostas alternativas, conforme as peculiaridades locais?

O processo, unificado, com regras válidas para todo o Brasil, nos dias de hoje, não vem atendendo às peculiaridades regionais de um Estado de dimensões continentais e diversidades culturais nítidas.

Logicamente, quanto às normas fundamentais de processo penal, mormente as que estão, expressamente, previstas na Constituição Federal, devem ser mantidas em caráter geral. Todas as regras que disserem respeito aos direitos e garantais humanas fundamentais precisam valer, igualmente, em todo o Brasil. Exemplo disso: ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, excluídas as transgressões militares e outros delitos propriamente militares (art. 5º, LXI, CF).

Outras regras, entretanto, precisariam ser regionalizadas, como, por exemplo, os procedimentos e seus prazos. Cada Estado poderia elaborar as suas particulares normas para citação, intimação e realização de audiências.

Sob outro prisma, quanto à produção de provas, o exame de corpo de delito pode ser de simples realização em cidades aparelhadas; entretanto, pode transformar-se em um grande problema em vilarejos sem o menor instrumental. Por isso, o disposto no art. 158 do CPP pode não ter nenhuma valia nesses locais, quando se verificar, na prática, a realização de constatações da materialidade do crime, erguidas em bases totalmente diversas das previstas no Código de Processo Penal. No caso concreto, no entanto, o criminoso não pode ficar impune. O que se faz se, em determinada Comarca (ou vilarejo), não se dispõe de perito e nem mesmo de duas pessoas portadoras de diploma de curso superior, como preceitua o art. 159, § 1º, do CPP? Em muitos casos concretos, improvisa-se, mas, com certeza, não se efetiva um exame de corpo de delito (perícia), ainda que a infração penal deixe vestígios materiais. Dir-se-á: usemos o disposto no art. 167 do CPP (“não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta”). Ora, em muitas situações, os vestígios não desapareceram, mas há carência para se conseguir a prova pericial. Valeriam os depoimentos testemunhais? A impossibilidade do Estado em providenciar o exame pericial equivale ao desaparecimento dos vestígios?

Tivemos conhecimento de casos em que populares fotografaram o cadáver, com suas câmaras, entregando as fotos à polícia, que somente chegou ao local meses depois do crime ter sido praticado, quando a vítima já tinha sido enterrada e o corpo já não comportava a perícia adequada (aliás, inexistente na região). Tais fotografias, tiradas por particulares, supririam o exame de corpo de delito?

Em síntese, sem pretender apresentar as soluções definitivas para as questões levantadas, parece-nos viável que uma reforma processual penal contemplasse, em vários aspectos, a regionalização das normas processuais penais.

Nota-se não ser suficiente o disposto no art. 22, parágrafo único, da Constituição Federal, nem tampouco o preceituado no art. 24, I, X e XI, também da Constituição Federal. Os Estados-membros não têm poder para legislar contra o disposto em lei federal, como é o caso do Código de Processo Penal, mas somente em caráter suplementar, se autorizados por Lei Complementar, ou nas poucas matérias especificadas no art. 24.

Por isso, caberia ao legislador, em nível federal, buscar flexibilizar o Código de Processo Penal, mantendo normas básicas e fundamentais para todo o Brasil, mas deixando ao critério de cada Estado legislar sobre matéria de seu peculiar interesse e conforme cada caso concreto (v. g., procedimentos, produção de provas, prazos, nulidades, dentre outros temas). Se em países que constituem autêntica Federação, como os Estados Unidos, sem a imensa concentração de poderes detida pela União, até mesmo os Códigos Penais são estaduais, não há motivo para unificar o processo penal brasileiro como se todos os Estados-membros fossem – e devessem ser – parcelas idênticas de um todo uniforme. Para a reflexão do leitor, do operador do Direito e, sobretudo, do legislador.

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O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)