A vida só tem um sentido, e o único sentido que a vida tem é quando investimos nossa vida na vida dos outros, ou quando encarnamos a luta dos outros como se ela fosse nossa, a luta do coletivo. Esta é a lida do Promotor de Justiça: lutar pela construção contínua da cidadania e da justiça social. O compromisso primordial do Ministério Público é a transformação, com justiça, da realidade social.



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12 de março de 2007

Crime e Castigo


TJ-SP ignora STF e barra progressão em crime hediondo
Depois de travar guerra com o Conselho Nacional de Justiça, o Tribunal de Justiça de São Paulo resolveu enfrentar o Supremo Tribunal Federal. Ignorou a corte e decidiu: não há inconstitucionalidade na lei que proíbe a progressão de regime para condenados por crimes hediondos.
A posição foi firmada pelo Órgão Especial do TJ paulista no dia 28 de fevereiro e é, no mínino, ousada. O Plenário do STF decidiu, ao analisar um pedido de Habeas Corpus, que a vedação da progressão viola a Constituição Federal.
Embora a decisão tenha efeito apenas para o HC em questão, mostra de que maneira o Supremo — responsável pela palavra final quando o assunto é Justiça — vai se posicionar se chegar às suas mãos uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a proibição da progressão (artigo 2º, parágrafo 1º da Lei 8.072/90, a chamada Lei dos Crimes Hediondos).
Não é a primeira vez que a decisão do Supremo sobre crimes hediondos é contestada. O juiz da Vara de Execuções Penais de Rio Branco também decidiu, recentemente, que a decisão do STF não tem efeito vinculante. Contra a decisão do juiz, a Defensoria Pública ajuizou Reclamação no Supremo.
Ao votar, o ministro Gilmar Mendes equiparou o controle de constitucionalidade direto ao incidental. Ou seja, entendeu que quando o Supremo decide que determinada lei é inconstitucional, ainda que em pedido de Habeas Corpus, a decisão não depende da chancela do Senado para gerar efeitos sobre as demais instâncias da Justiça. “A própria decisão da Corte contém essa força normativa”, disse.
O julgamento da Reclamação contra a decisão do juiz foi suspenso por pedido de vista do ministro Eros Grau.
A permissão de progressão de regime para condenados por crimes hediondos deve virar Súmula Vinculante. Ainda assim, o TJ paulista decidiu que é constitucional o dispositivo que veda a progressão.
A discussão foi levada ao Órgão Especial da Justiça paulista pela 3ª Câmara Criminal do TJ, que suscitou incidente de inconstitucionalidade ao analisar pedido de Habeas Corpus. O desembargador Ivan Sartori, relator designado, se baseou na Súmula 698 do Supremo, que diz: “Não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura”.
A jurisprudência foi aprovada em setembro de 2003, dois anos e meio antes do Plenário firmar seu novo entendimento sobre a progressão de regime. Antes, também, de a Corte manifestar a vontade de aplicar Súmula Vinculante sobre o assunto.
Para o desembargador Ivan Sartori, a vedação da progressão de regime encontra respaldo no artigo 5º da Constituição Federal da República. Sartori considerou que tanto a individualização da pena, princípio usado pelo Supremo para declarar a vedação de progressão inconstitucional, como o tratamento diferenciado para condenado por crime hediondo estão contemplados no artigo 5º da Constituição Federal. Para ele, os dois princípios têm “o mesmo quilate”.
Há a necessidade, então, de se encontrar uma “interpretação harmônica”, esclareceu Sartori, ainda que contrarie o que a corte máxima resolveu. “A diferenciação de tratamento em questão traduz autêntica diretriz de política criminal a ser observada pelo legislador, que, inclusive, tem a faculdade de complementar o rol constitucional.”

Veja o voto de Sartori

INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE nº 142.384-0/8-00
Comarca: SÃO PAULO
Órgão Julgador: Órgão Especial
Sucte: 3ª CÂMARA DO 2º GRUPO DA SEÇÃO CRIMINAL DO TJ
Sucdo: CRISTIANO ULYSSES DE CARVALHO e SIDNEY EMERSON DA SILVA
Relator

VOTO DO RELATOR
Ementa: Incidente de inconstitucionalidade – Art. 2º, parágrafo 1º, da Lei 8.072/90 – Dispositivo a encontrar respaldo no art. 5º, XLIII, da CF – Tratamento diferenciado constitucional para os chamados crimes hediondos – Inexistência de pronunciamento concentrado do STF – Prevalência da Súmula 698 daquela Corte – Incidente julgado improcedente, por maioria.

Trata-se de incidente de inconstitucionalidade levantado em sede de “habeas corpus” pela Eg. Câmara suso epigrafada, com vistas à apreciação da constitucionalidade do art. 2º, parágrafo 1º, da Lei 8.072/90, que veda a progressão de regime prisional. Sustenta o órgão fracionário argüente a possibilidade de não estar dita disposição conforme o princípio constitucional da individualização da pena.
A Procuradoria Geral de Justiça é pela constitucionalidade da norma.
Esse é o relatório.
Não se vislumbra inconstitucionalidade no art. 2º, parágrafo 1º, da Lei 8.072/90, dês que a própria Carta da República prevê tratamento diferenciado para os ali chamados crimes hediondos e assemelhados (art. 5º, inciso XLIII).
Esse entendimento, aliás, é objeto da Súmula 698 do Supremo Tribunal Federal, Corte essa que, embora venha revendo essa posição por maioria apertada e em casos isolados, a exemplo do HC 82.959-7, não cancelou ainda aludido verbete, nem lançou decisão em decorrência de ação direta de inconstitucionalidade, a ponto de cogitar-se de caráter vinculante “erga omnes”.
Escreve Fábio Galindo Silvestre:
“Parece-nos que a melhor interpretação jurídica do preceito insculpido no parágrafo 1º., do art. 2º da Lei 8.072/1990 frente à Constituição é aquela que sustenta a sua total compatibilidade com o atual ordenamento constitucional. Isto porque, na linha dos votos-vencidos [HC 82.959-7], o referido dispositivo encontra-se nas dobras do disposto no art. 5º, inciso XLIII, da Constituição da República, que impõe tratamento diferenciado e mais severo aos crimes hediondos e seus assemelhados (tráfico de entorpencentes, tortura e terrorismo). Esse tratamento diferenciado e mais rigoroso atende também ao secular critério de isonomia e ao moderno conceito de razoabiliade/proporcionalidade.” (Inconstitucionalidade do Regime Integralmente Fechado aos Condenados por Crimes Hediondos, “in” RDPP no. 37 – abr-maio/2006 – Assunto Especial – Doutrina, págs. 07/19).
A tese contrária mais se esteia no princípio constitucional da individualização e humanização das penas (art. 5º, inciso XLVI c/c art. 1º, III, da CF).
Ocorre que tanto o tratamento diferenciado em relevo como essa individualização vêm contemplados no art. 5º, como visto, sendo ambas as normas, portanto, de ordem pétrea e produto do Poder Constituinte originário, sucedendo que se está diante de dispositivos de mesmo quilate.
Daí por que que nem mesmo a arriscada tese da inconstitucionalidade de dispositivo constitucional pode ter lugar na espécie, impondo-se sim interpretação harmônica, como, de resto, é de verificar-se em regra.
E argumentos outros, como, v.g., de que o desconto da pena em regime integralmente fechado seria cruel ou desumano, nada têm de jurídico, sendo produto de avaliação subjetiva íntima não positivada no ordenamento jurídico.
Na verdade, a diferenciação de tratamento em questão traduz autêntica diretriz de política criminal a ser observada pelo legislador, que, inclusive, tem a faculdade de complementar o rol constitucional.
Nesse contexto, bem respaldada constitucionalmente a norma em discussão, disso resultando que sua inobservância é o mesmo que negar vigência, por via reflexa, a previsão da Lei Suprema.
Julga-se improcedente o incidente, reconhecida a constitucionalidade do art. 2º, parágrafo 1º, da Lei 8.072/90.
Des. IVAN SARTORI
Relator Designado

Revista Consultor Jurídico, 11 de março de 2007, por Aline Pinheiro.

Um comentário:

Anônimo disse...

Sobre o tema, muito preciso é parecer do procurador de Justiça do MPRS, Dr. Lenio Streck. Vejam:

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL
QUINTA CÂMARA CRIMINAL
AGRAVO EM EXECUÇÃO N.º 70014946958
AGRAVANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO
AGRAVADO: ANTÔNIO ALITO QUEVEDO
RELATOR: AMILTON BUENO DE CARVALHO

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO

PROGRESSÃO DE REGIME. CRIME HEDIONDO.
Progressão deferida em primeiro grau com base em precedente do Supremo Tribunal Federal (HC 82959), proferido em controle difuso de constitucionalidade. Impossibilidade.
Quebra do sistema constitucional, que indica a providência adequada (remessa ao Senado Federal, para que suspenda a execução da Lei n.º 8.072/90, oportunidade em que a regulamentação possuirá eficácia contra todos e ex nunc).
Ausência de exame dos requisitos subjetivos (laudos). Contrariedade à posição do STF (HC n. 85.204-1/RS, de 11 de maio de 2006).
Provimento do recurso.

Trata-se de agravo em execução interposto pelo Promotor de Justiça de Candelária, João Afonso Silva Beltrame contra a decisão que concedeu ao recorrido (condenado pelo delito de latrocínio, a uma pena de 24 anos e 06 meses de reclusão) a progressão de regime, rescindindo a coisa julgada, a qual impunha o regime de cumprimento de pena integralmente fechado.
Em razões, resumidamente, argumentou que a decisão do Supremo Tribunal Federal não ter caráter vinculativo, uma vez que proferida no controle difuso, bem como que não há a demonstração do requisito subjetivo para a concessão do benefício. Alega que, em sendo mantida a possibilidade de progressão, não deve ser adotado o prazo geral de 1/6 da pena cumprida.
Em contra-razões a defesa manifestou-se pelo improvimento.
A decisão foi mantida. Vieram os autos para parecer.
É o relatório.
PARECER
1. A Lei n.º 8072 entrou em vigor em 1990. Logo se acendeu a polemica acerca de sua constitucionalidade.
O problema se agravou com o advento da Lei da Tortura (Lei 9455/97), que trouxe mais munição a corrente que defendia a tese da inconstitucionalidade da progressão de regime.
2. Nesses mais de 15 anos, por inúmeras vezes, o Supremo Tribunal Federal – encarregado de dizer por último aquilo que é e aquilo que não é (in)constitucional – vinha decidindo que não era inconstitucional proibir progressão de regime em crime hediondo.
3. Interessante notar que nesse longo período, embora o Supremo Tribunal Federal viesse acenando com a constitucionalidade da lei, em nenhuma oportunidade aquele Pretório foi provocado para que se manifestasse a respeito do problema em sede de controle concentrado. Afinal – e eu mesmo apontei para isso várias vezes – o Procurador-Geral da República poderia ter ingressado com ação direta de constitucionalidade (ADC) que, por ter efeito vinculante, poderia ter posto fim a discussão. De outra banda, também aqueles que entendiam ser inconstitucional a lei não ingressaram com ação direta de inconstitucionalidade (ADIN), como a OAB, p. ex. Aliás, como se sabe, depois do advento da Lei 9.668, a ADI e a ADC possuem efeitos invertidos. Portanto, qualquer das ações a serem interpostas resolveria o problema.
4. Como resultado, enquanto durante três lustros o Supremo Tribunal Federal decidia, em sede de controle difuso, que a lei era constitucional – rejeitando os recursos extraordinários nesse sentido e reformando as decisões concessivas de progressão – uma quantidade enorme de juizes e tribunais, ainda que sem suscitar o incidente ínsito ao art. 97 da CF, julgavam inconstitucional e/ou simplesmente inaplicavam a vedação da progressão de regime. Afinal de contas, não havia sido feita nesses anos todos nem sequer uma súmula a respeito. Tratava-se, destarte, de um mundo da “natureza hermenêutica” em que cada uma decidia como queria. Veja-se que nesse período foram incontáveis os recursos a respeito da matéria. Milhares. Dezenas de milhares. Tudo despiciendo, acaso tivesse sido tomada a providência que o sistema exigia (ADC ou ADI). É bem verdade que o Supremo Tribunal Federal entendia o dispositivo como constitucional, o que não demandaria remessa ao Senado, por exemplo. Mas, como diziam os defensores da tese contrária, não havia qualquer decisão – e isso era verdade – que sistemicamente obrigasse a seguir a decisão do Pretório Excelso. Invocava-se, pois – e com acerto -, a ratio do controle difuso: vale só para as partes, isto é, para aquele caso concreto. Não havia efeito erga omnes (se assim não o fosse, a ninguém seria lícito considerar inconstitucional, naquele momento, a lei que o Supremo Tribunal Federal considerava constitucional).
5. Passado o tempo, mudou a composição do Supremo Tribunal Federal e pelo menos um integrante alterou sua posição. Como conseqüência, em 2006, por 6 votos a 5, o Supremo Tribunal Federal passou a considera inconstitucional a vedação de progressão de regime nos crimes hediondos.
6. Decidida a inconstitucionalidade – que, aliás, foi sempre a minha posição, e até por isso a tese que ora estou sustentando é absolutamente insuspeita – restava definir os efeitos da decisão. Obviamente, na medida em que se tratava do controle difuso, os efeitos da decisão beneficiavam aquele acusado que impetrara o habeas córpus (leading case). Seu efeito erga omnes está – parece óbvio – vedado. Afinal, a decisão não ocorreu em sede de controle concentrado. Mais ainda, o Supremo Tribunal Federal nem sequer remeteu a decisão ao Senado, que ao suspender a execução do dispositivo, daria, ai sim, o efeito contra todos. Veja-se, de pronto, a violação do art. 52,X, da Constituição.
7. Mas, de qualquer modo, isso não seria suficiente, uma vez que, mesmo que fosse remetida ao Senado, ainda assim a eficácia seria ex nunc. Fosse ex tunc e todos os acusados que cumpriram (e cumprem) pena em regime fechado (sem progressão) teriam direito a indenização. Afinal, foram todos tolhidos em seu direito de receber o benefício da progressão por uma lei nula, írrita, nenhuma. Ou isso, ou, de fato, o efeito não pode retroagir. Portanto, ou uma coisa ou outra.. As duas ao mesmo tempo são antitéticas. Repito: ao se dar efeito retroativo a uma decisão as conseqüências devem ser bem sopesadas. Aliás, por isso é que nos E.U.A. a exceção para o efeito ex tunc é exatamente o Direito Penal.
8. Dito de outro modo: se o STF aprecia, no modo full bench, apenas uma vez a questão constitucional relacionada a determinada lei ou dispositivo, e, portanto, encerra a discussão, deve obedecer ao disposto no art. 52, X, da CF, remetendo a decisão de inconstitucionalidade para o Senado; se leva mais de uma vez a questão ao plenário, e, desse modo, não a remete ao Senado, é porque a questão, em sede de controle difuso, não está suficientemente assentada. Conseqüentemente, também não se poderá exigir que, enquanto a decisão de inconstitucionalidade não for remetida ao Senado, os tribunais estejam vinculados a tal decisão, mediante a dispensa da suscitação do respectivo incidente, o que nada mais é do que aceitar a matéria como definitiva. A leitura dos arts. 52, X, e 97 da Constituição não permite que se conclua que, em sede de controle difuso, possa haver discricionariedade por parte do Supremo Tribunal para remessa de decisão de inconstitucionalidade de ato normativo por ele declarado inconstitucional, ao Senado da República.
9. Insista-se no assunto referente ao efeito da decisão do Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso de constitucionalidade. Em sede de recurso extraordinário (ou outro recurso ou ação), o efeito da decisão é inter partes e ex tunc. Assim, na hipótese de o Supremo Tribunal declarar a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo em sede de recurso extraordinário, remeterá a matéria ao Senado da República, para que este suspenda a execução da referida lei (art. 52, X, da CF). Caso o Senado da República efetive a suspensão da execução da lei ou do ato normativo declarado inconstitucional pelo STF, agregará aos efeitos anteriores a eficácia erga omnes e ex nunc.
10. Estou convicto que os efeitos da decisão suspensiva do Senado não podem ter efeitos ex tunc (veja-se que, no direito alemão, admite-se a revisão, a qualquer tempo, de sentença penal condenatória baseada em lei declarada inconstitucional, só que essa declaração é sempre originária de controle concentrado, pela simples razão de que naquele sistema não há controle difuso). Afinal, há que se fazer uma diferença entre a retirada da eficácia da lei, em sede de controle concentrado, e a suspensão de execução que o Senado faz de uma lei declarada inconstitucional em sede de controle difuso. Suspender a execução da lei não pode significar retirar a eficácia da lei. Caso contrário, não haveria diferença, em nosso sistema, entre o controle concentrado e o controle difuso. Suspender a vigência, aliás, só poderia ser tarefa do Poder Legislativo; ao Judiciário, em sede de jurisdição constitucional, cabe tão-somente trabalhar no plano da eficácia. Por isso a decisão de suspensão da execução da lei não pode ter o condão de fazer retroagir esses efeitos. Uma lei produziu efeitos, que não podem ser revogados desse modo.
11. A suspensão da lei somente pode gerar efeitos ex nunc, pela simples razão de que a lei está suspensa (revogada), à espera da retirada de sua eficácia. Daí a diferença entre suspensão/revogação e retirada da eficácia. Não se olvide a diferença nos efeitos das decisões do Tribunal Constitucional da Áustria (agora adotada no Brasil), de onde deflui a diferença entre os efeitos ex tunc (nulidade) e ex nunc (anulabilidade).
12. Dito de outro modo, quando se suspende a execução de uma lei, seus efeitos permanecem; quando se a nulifica, é esta írrita, nenhuma. Não fosse assim, bastaria que o Supremo Tribunal remetesse a lei declarada inconstitucional, em sede de controle difuso, ao Senado, para que os efeitos fossem equiparados aos da ação direta de inconstitucionalidade (que historicamente, seguindo o modelo norte-americano, sempre foram ex tunc). Se até o momento em que o Supremo Tribunal declarou a inconstitucionalidade da lei no controle difuso, a lei era vigente e válida, a decisão no caso concreto não pode ser equiparada à decisão tomada em sede de controle concentrado.
13. Repetindo: a valer a tese de que os efeitos da decisão do Senado retroagem, portanto, são ex tunc, qual a real modificação que houve com a implantação do controle concentrado, em 1965? Na verdade, se os efeitos da decisão desde sempre tinham o condão de transformar os efeitos inter partes em efeitos erga omnes e ex tunc, a pergunta que cabe é: por que, na prática, desde o ano de 1934 até 1965, o controle de constitucionalidade tinha tão pouca eficácia? Desse modo, tenho que a razão está com aqueles que sustentam os efeitos ex nunc da decisão suspensiva do Senado.
14. Numa palavra: se a tese de que a decisão do Senado produz efeito ex tunc e erga omnes é correta, qual a razão pela qual o STF dela não se utiliza desse instrumento constitucional? No caso em questão, bastaria remeter a recente decisão ao Senado.
15. E qual é o estado da arte a partir do leading case que entendeu ser inconstitucional a vedação da progressão de regime aos condenados por crimes hediondos (e equiparados)? A decisão do Supremo Tribunal Federal em controle difuso está sendo recepcionada por juizes e tribunais como se tivesse sido proferida no controle concentrado, chegando a atingir, para meu espanto, a coisa julgada. O que o STF decidiu, em termos de modulação da decisão, é que em havendo alguém cumprindo pena, o juiz em sede de execução penal, devidamente comprovados os requisitos subjetivos e objetivos, pode, aferindo o caso concreto, deferir a progressão. Aqui, antes de mais nada, é preciso assinalar independentemente do acerto ou do erro da decisão do Supremo Tribunal Federal, que em nenhum momento o tribunal decidiu que bastaria o cumprimento de 1/6 da pena. É obvio que não. O que o Supremo Tribunal Federal fez foi redefinir o sentido do art. 112 da Lei de Execução Penal, isto é, se se chegou a pensar que os laudos estavam dispensados com a nova redação dada pela Lei n.º 10.792/03, agora explicitamente, passou a permitir o exame de mérito do condenado (veja-se o presente caso, em que a progressão pedida é de um latrocida condenado a 24 anos, por ter matado para roubar um idosa de 75 anos; alguém teria dúvida de que os laudos seriam exigíveis?).
16. Dito de outro modo, o Supremo Tribunal Federal decidiu que é permitida a progressão, desde que examinado o mérito do condenado, o que inclui as avaliações psicológicas. Frise-se nesse sentido os votos dos Ministros Carlos Ayres Brito, Gilmar Ferreira Mendes , Celso de Mello, Ellen Greice e Eros Grau, bastante claros sobre a necessidade de decisão caso a caso, o que é (obviamente) incompatível com a vinculação aos atestados fornecidos pelo administrador do estabelecimento penitenciário, porquanto nestes casos há simples conferência do comportamento, sem qualquer valoração (atividade meramente homologatória).
Acabando, de vez, com a polêmica, o Min. Gilmar Ferreira Mendes, no HC n.º 85.204-1/RS, de 11 de maio de 2006, citando o voto do Min. Celso de Mello no leading case (HC 82.959/SP), esclareceu a posição do Supremo Tribunal Federal:
Impende assinalar, no entanto, que esta Suprema Corte, nesse mesmo julgamento plenário, explicitou que a declaração incidental em questão não se reveste de efeitos jurídicos, inclusive de natureza civil, quando se tratar de penas já extintas, advertindo, ainda, que a proclamação de inconstitucionalidade em causa – embora afastando a restrição fundada no § 1° do art. 2° da Lei n° 8.072/90 - não afeta nem impede o exercício, pelo magistrado de primeira instância, da competência que lhe é inerente em sede de execução penal (LEP, art. 66, III, 'b'), a significar, portanto, que caberá, ao próprio Juízo da Execução, avaliar, criteriosamente, caso a caso, o preenchimento dos demais requisitos necessários ao ingresso, ou não, do sentenciado em regime penal menos gravoso.
Na realidade, o Supremo Tribunal Federal, ao assim proceder, e tendo presente o que dispõe o art. 66, III, 'b', da LEP, nada mais fez senão respeitar a competência do magistrado de primeiro grau para examinar os requisitos autorizadores da progressão, eis que não assiste, a esta Suprema Corte, mediante atuação 'per saltum' - o que representaria inadmissível substituição do Juízo da Execução -, o poder de antecipar provimento jurisdicional que consubstancie, desde logo, a outorga, ao sentenciado, do benefício legal em referência.
Tal observação põe em relevo orientação jurisprudencial que esta Suprema Corte firmou em torno da inadequação do processo de 'habeas corpus', quando utilizado com o objetivo de provocar, na via sumaríssima do remédio constitucional, o exame dos critérios de índole subjetiva subjacentes à determinação do regime prisional inicial ou condicionadores da progressão para regime penal mais favorável (RTJ 119/668 - RTJ 125/578 - RTJ 158/866 - RT 721/550, v.g.).
Não constitui demasia assinalar, neste ponto, não obstante o advento da Lei n° 10.792/2003 - que alterou o art. 112 da LEP, para dele excluir a referência ao exame criminológico -, que nada impede que os magistrados determinem a realização de mencionado exame, quando o entenderem necessário, consideradas as eventuais peculiaridades do caso, desde que o façam, contudo, mediante decisão adequadamente motivada, tal como tem sido expressamente reconhecido pelo E. Superior Tribunal de Justiça (HC 38.719/SP, Rel. Min. HÉLIO QUAGLIA BARBOSA - HC 39.364/PR, Rel. Min. LAURITA VAZ – HC 40.278/PR, Rel. Min. FELIX FISCHER – HC 42.513/PR, Rel. Min. LAURITA VAZ) e, também, dentre outros, pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (RT 832/676 – RT 837/568):
'(...). II - A nova redação do art. 112 da LEP, conferida pela Lei 10.792/03, deixou de exigir a realização dos exames periciais, anteriormente imprescindíveis, não importando, no entanto, em qualquer vedação à sua utilização, sempre que o juiz julgar necessária.
III - Não há qualquer ilegalidade nas decisões que requisitaria a produção dos laudos técnicos para a comprovação dos requisitos subjetivos necessários à concessão da progressão de regime prisional ao apenado.
(...).'
(HC 37.440/RS, Rel. Min. GILSON DIPP - grifei)
'A lei 10.792/2003 (que deu nova redação ao art. 112 da Lei de Execução Penal) não revogou o Código Penal; destarte, nos casos de pedido de benefício em que seja mister aferir mérito, poderá o juiz determinar a realização de exame criminológico no sentenciado, se autor de crime doloso cometido mediante violência ou grave ameaça, pela presunção de periculosidade (art. 83, par. ún., do CP).'
(RT 836/535, Rel. Des. CARLOS BIASOTTI - grifei)
A razão desse entendimento apoia-se na circunstância de que, embora não mais indispensável, o exame criminológico – cuja realização está sujeita à avaliação discricionária do magistrado competente - reveste-se de utilidade inquestionável, pois propicia, 'ao juiz, com base em parecer técnico, uma decisão mais consciente a respeito do benefício a ser concedido ao condenado' (RT 613/278).
As considerações ora referidas, tornadas indispensáveis em conseqüência do julgamento plenário do HC 82.959/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, evidenciam a impossibilidade de se garantir, notadamente em sede cautelar, o ingresso imediato do ora sentenciado em regime penal mais favorável.
Cabe registrar, neste ponto, que o entendimento que venho de expor encontra apoio em recentíssimo julgamento da colenda Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, que, ao apreciar o RHC 86.951/RJ, Rel. Min. ELLEN GRACIE, deixou assentado que, em tema de progressão de regime nos crimes hediondos (ou nos delitos a estes equiparados), cabe, ao magistrado de primeira instância, proceder ao exame dos demais requisitos, inclusive aqueles de ordem subjetiva, para decidir, então, sobre a possibilidade, ou não, de o condenado vir a ser beneficiado com a progressão do regime de cumprimento de pena." (HC no 88.231-SP, Rel. Min. Celso de Mello, decisão liminar, DJ de 20/03/2006).

Em conclusão, a decisão do Plenário buscou tão-somente conferir máxima efetividade ao princípio da individualização das penas (CF, art. 5º, LXVI) e ao dever constitucional-jurisdicional de fundamentação das decisões judiciais (CF, art. 93, IX).

Assim, para aqueles que conferiram verdadeiro efeito vinculante ao HC 82.959-SP, no ponto em que reconheceu a inconstitucionalidade do regime de cumprimento integralmente fechado, cumpre, por coerência, também seguir o restante do acórdão, onde o Supremo Tribunal Federal entendeu que a nova redação do art. 112 da LEP, conferida pela Lei 10.792/03, deixou de exigir a realização dos exames periciais, anteriormente imprescindíveis, não importando, no entanto, em qualquer vedação à sua utilização, sempre que o juiz julgar necessária, como, aliás, sustentei desde o início da vigência da citada lei, inclusive através de representação feita ao Procurador Geral da República, firmada em conjunto com o Procurador-Geral de Justiça, Dr. Roberto Bandeira Pereira ( e veja-se que, embora o PGR tenha arquivado a representação com singela fundamentação, tínhamos razão!!!).
A posição do STF no mais recente julgamento deixa claro que o exame criminológico [cuja realização está sujeita à avaliação do juiz das execuções] reveste-se de utilidade inquestionável, pois propicia, ao juiz, com base em parecer técnico, uma decisão mais consciente a respeito do benefício a ser concedido ao condenado.
17. Portanto, devemos ter cuidado, uma vez que a inconstitucionalidade da lei não implicou na concessão automática de progressão. Isto é, a decisão não implicou elevar a declaração do diretor do presídio em documento plenipotenciário, que somado ao requisito temporal, resultará no deferimento da progressão. É claro que não.
18. Mas tão grave como essa interpretação pela qual os laudos estariam dispensados (sic) é a interpretação que o próprio Supremo Tribunal Federal deu a sua decisão proferida em controle difuso. Com efeito, o que está ocorrendo é que a modulação dos efeitos da decisão do STF rasga o sistema de cima a baixo, atingindo, até mesmo, a coisa julgada. Ora, a coisa julgada em matéria penal somente soçobra quando: a uma, sobrevier uma nova lei mais benéfica; a duas, quando a lei for declarada inconstitucional no controle concentrado (e ainda assim se não for dada a decisão efeito ex nunc, conforme permissivo do art. 27 da Lei 9.868, como aliás é praxe nos EUA, onde não se dá efeito retroativo a eventual decisão da Suprema Corte que considera inconstitucional um dispositivo ou lei penal); a três, e finalmente, quando se trata de jurisprudência mais benéfica. As primeiras duas questões são tranqüilas. Induvidosas. O problema está na terceira hipótese. É possível fazer retroagir uma decisão – não só para o caso, mas para todos os demais -, mesmo que proveniente do Supremo Tribunal Federal , proferida em controle difuso e por escassa maioria, a ponto de implodir a coisa julgada? Pergunto, ademais: Vingando a tese, é possível, a partir de um julgamento procedente (por 6x5) em RExt que tenha como objeto a inconstitucionalidade de dispositivo legal, impetrar habeas corpus para a eventual extinção da punibilidade ou outra conseqüência favorável? Basta uma decisão em sede de controle difuso para esse desiderato?
Portanto, vários problemas se apresentam:
a) o sistema de controle difuso ancora-se na necessidade da remessa ao Senado para a obtenção do efeito ex nunc e eficácia erga omnes;
b) as decisões transitadas em julgado e todas as demais anteriores a mudança da orientação do Supremo Tribunal Federal foram proferidas com “boa-fé constitucional”, isto é, o juiz de Candelária-RS, por exemplo, para aproveitar o caso em concreto, quando aplicou a proibição de progressão estava efetiva e totalmente decidindo de acordo com a opinião majoritária do Supremo Tribunal Federal.
c) Veja-se, aqui, um fato curioso: enquanto o Supremo Tribunal Federal, também no controle difuso decidia-se pela constitucionalidade, ninguém pensou em dar efeito vinculante a referida decisão (e foram várias, durante muitos anos). Agora, parece que uma decisão do Supremo Tribunal Federal funciona como um precedente da common law, atravessando de cima a baixo o sistema jurídico brasileiro, que como se sabe é filiado ao sistema romano-germânico;
d) na verdade, a Suprema Corte também se equivoca, e é o que, s.m.j., está acontecendo neste momento. Se acertou no principal (inconstitucionalidade da proibição de progressão) errou no secundário, ao pretender conceder efeito vinculante a uma decisão que não a tem. E não a tem, entre outras razões, porque com o advento da E.C. 45, somente tem vinculação jurisprudência em matéria constitucional que recebe o rótulo de súmula e que precisa não de seis votos (isto é, maioria absoluto), mas, sim, o quorum qualificadíssimo de 8 votos. Veja-se, e permitam a singeleza de minha observação: hoje o Supremo Tribunal Federal não teria quorum para fazer uma súmula afirmando a inconstitucionalidade da vedação da progressão de regime aos crimes hediondos (claro que não estou confundindo súmula com declaração de inconstitucionalidade; na verdade, refiro-me à posição do STF sobre ser inconstitucional o dispositivo e a conseqüente modulação dos efeitos que foi dada ao referido dispositivo). Esclarecendo melhor: se o STF declara a inconstitucionalidade de uma lei em sede de controle difuso, como é o caso, deve remeter, por força do art. 52,X, ao Senado, para que suspensa a execução da lei. Essa suspensão se dá no plano da vigência e por isso terá efeitos ex nunc. O STF, querendo modular os efeitos de sua decisão, atuando, portanto, no plano da eficácia da lei, deverá emitir – se for o caso – uma súmula, evitando avalanche de recursos acerca da matéria, até porque a decisão (leading case) produz efeito somente inter partes.
e) Logo, ai está a questão: se o Supremo Tribunal Federal quer dar efeito vinculante a uma decisão apertada de 6 x 5, em controle difuso deve, s.m.j, editar uma súmula (ou seguir os passos do sistema, remetendo a decisão ao Senado). Ou isso, ou as súmulas perderam sua razão de ser, porque valerão tanto ou menos que uma decisão por 6 x 5 (sempre com o alerta de que não se pode confundir súmulas com declarações de inconstitucionalidades).
f) Uma decisão de inconstitucionalidade – em sede de controle objetivo - funciona como uma derrogação da lei feita pelo Poder Legislativo. O Supremo Tribunal Federal, ao declarar uma inconstitucionalidade, funciona como “legislador negativo”. Por isso também são bem diferentes os efeitos das decisões de inconstitucionalidade em países que possuem controle difuso ou controle misto (concentrado-difuso) e aqueles que possuem apenas o controle concentrado, bastando ver, para tanto, como funcionam os tribunais constitucionais europeus em comparação com os Estados Unidos (controle difuso stricto sensu) ou o Brasil (controle misto).
g) Em face disso é que, em sede de controle difuso torna-se necessário um plus eficacial à decisão do Supremo Tribunal, introduzido em 1934, com o objetivo de conceder efeito erga omnes às decisões de inconstitucionalidade (hoje o art. 52,X). Observemos: tanto no controle concentrado como no difuso o STF decide através de full bench. A diferença é que, na primeira hipótese, o controle é objetivo (é “em tese”); no segundo caso, o julgamento representa uma questão prejudicial de um determinado “caso jurídico”. Mas, então, pergunto: se em ambos os casos o julgamento é feito em full bench e o quorum é o mesmo (mínimo de seis votos), o que realmente diferencia as decisões?
h) A pergunta faz sentido, exatamente porque, neste momento, o Supremo Tribunal, ao “modular os efeitos” do leading case dos crimes hediondos, colocou de lado qualquer diferença entre os institutos. Mas, se são iguais, porque são diferentes? Aí é que está o problema: as decisões exsurgentes do controle difuso não possuem autonomia, dependendo do socorro do poder legislativo para adquirem força vinculante erga omnes. É nesse sentido que o Senado, integrante do Poder Legislativo, ao editar a resolução que suspende a execução da lei, atuará não no plano da eficácia da lei (essa é feita em controle concentrado pelo STF), mas, sim, no plano da vigência da lei. Daí que, no primeiro caso – controle concentrado – o efeito pode ser ex tunc; no segundo caso – controle difuso – o efeito somente poderá ser ex tunc para aquele caso concreto e ex nunc após o recebimento do plus eficacial.
i) A vingar a tese da modulação dos efeitos realizada pelo Supremo Tribunal Federal, ter-se-á que todas as decisões – qualquer delas – terão efeito vinculante no sistema. Por exemplo, há poucos dias o Supremo Tribunal Federal decidiu que não poderá ser negado ao advogado acesso a qualquer inquérito ou investigação. Aplicada de cima para baixo, não será mais possível, por exemplo, fazer uma escuta telefônica, para ficar nas coisas mínimas, em um país com altíssimas taxas de crimes do colarinho branco, que não prescindem do uso de tal mecanismo.
j) Mais: de há muito o Supremo Tribunal Federal vem dizendo em sede difusa que qualquer modalidade de estupro ou atentado violento ao pudor é hediondo. É decisão do plenário. Ou seja, o Supremo Tribunal Federal rejeita a tese, vitoriosa em vários tribunais e defendida pela imensa maioria dos penalistas pátrios, de que somente são hediondos os crimes sexuais cometidos com lesão grave ou morte. Daí a pergunta, procurando ser coerente e para manter a integridade hermenêutica do direito: por que parcela considerável dos tribunais não segue esse precedente? Na verdade, o que faz a riqueza do sistema são essas possibilidades de divergir.. Consequentemente, não é qualquer decisão que pode ser vinculante. Afinal, nosso sistema não é o da common law. Mesmo no sistema da common law Dworkin fala da força gravitacional dos precedentes. Uma decisão só pode ser considerada como sendo “um precedente” retrospectivamente se for considerado o caso concreto objeto de apreciação aqui e agora. Caso contrário, adotaríamos a tese da aplicação mecânica dos precedentes, típica do positivismo exegético, enfim, do convencionalismo estrito.
k) É por isso que foram introduzidas súmulas vinculante com exigência especial de quorum. É essa “jurisprudência” que pode ser vinculante em nosso sistema. A outra “jurisprudência” que vincula não é jurisprudência no sentido autêntico do termo, pois são decisões do Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado (objetivo, portanto). Ali, ao contrário da reiteração que caracteriza a jurisprudência, basta uma decisão e nada mais. Dito de outro modo, não se pode fazer interpretações ad hoc, mesmo com pluralidades de posições. Se entendermos que uma decisão do Supremo Tribunal Federal em controle difuso vale contra tudo e contra todos, e com efeito ex tunc, também teremos que entender que uma decisão afirmando a constitucionalidade de uma lei deve ter igual efeito. E teremos que suportar as conseqüências. Isto para ser coerente.
l) Mas não é isso que estou defendendo, isto é, não estou de acordo que uma decisão em sede de controle difuso possa ser vinculante por si só, proferida em favor ou contra a constitucionalidade de uma lei. O sistema jurídico deve ter uma coerência funcional, isto é, o controle difuso não pode ser equiparado ao controle concentrado. (portanto, o art. 52,X não é letra morta por ter “caído em desuso”, até porque, se admitirmos isso, qual será o limite desse processo de “desuso”, isto é, qual será a próxima norma a cair em “desuso”?) Quero dizer, em síntese, que há uma tradição em termos de controle difuso de constitucionalidade – sustentada em texto constitucional de clara dicção - que não pode ser quebrada, mesmo que seja por motivos pragmáticos.
m) Entendo, pois, que o direito deve ser aplicado coerentemente, a partir de sua integridade principiológica e reconstrução institucional, como bem recomenda Dworkin. A tradição do controle de constitucionalidade no Brasil, que vem desde 1891, não respalda essa nova visão do Supremo Tribunal Federal sobre a modulação dos efeitos em sede de controle difuso de constitucionalidade. Não fosse somente a tradição (no sentido que Gadamer dá a essa palavra), ainda assim haveria que se analisar o sistema como um todo articulado. Assim, se uma súmula para ser vinculante deve ser aprovada por dois terços dos membros do tribunal, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional (art. 130-A, da CF), não se pode admitir, permissa venia, que uma decisão com quorum reduzido tenha efeito contra todos e retroativo.
n) Dito de outro modo, se o Supremo Tribunal Federal está consciente de que a vedação de progressão de regime é inconstitucional, parece que o melhor caminho é que siga as diretrizes do sistema: ou remete a decisão ao Senado ou decide em controle concentrado se devidamente provocado, ou, finalmente, elabore uma súmula, como os necessários 8 votos (maioria que hoje não existe).
19. O caso concreto. O recorrido (Antônio Alito Quevedo) foi condenado a 24 anos e 06 meses de reclusão, pela prática do delito de latrocínio, fixando-se o regime de cumprimento de pena como integralmente fechado. O Superior Tribunal de Justiça, em decisões sobre a questão, também decidiu pela impossibilidade da progressão de regime na hipótese em sub examine (fls. 56 e 61). Já na decisão concessiva da fl. 63, o magistrado de primeiro grau referiu que é caso de progressão, forte no HC 82959 do Supremo Tribunal Federal, além de argumentar que não há mais possibilidade, diante da alteração legislativa de 2003, de prognose sobre a periculosidade do apenado.
Dois argumentos se contrapõem à decisão, portanto. Afora o fato de se tratar de coisa julgada e portanto não estar o juiz vinculado à decisão do leading case, a concessão peca por uma questão de infraconstitucionalidade, qual seja, a falta da comprovação do requisito subjetivo, demostrado pelas competentes avaliações.
Poder-se-ia esgrimir em favor da tese de que os efeitos da decisão do leading case se estenderia a todos os casos – inclusive aos já transitados em julgado – que a coisa julgada, por ser garantia constitucional, não pode ser utilizada para obstaculizar direitos do apenado. Em tese, a tese pode(ria) vingar. Mas, duas questões a ela se contrapõem: primeiro, a coisa julgada não é garantia meramente individual, de cariz liberal-individualista; é ela, também e fundamentalmente, um instituto que visa garantir a segurança das decisões, uma vez que possui uma dimensão objetiva, atuando como proteção concreta dos elementos nucleares da segurança jurídica (portanto, comunitária e transindividual), como bem assinala Ingo Sarlet, que precisa ser resguardada, ainda que se possa, eventualmente, cogitar de que estar-se-á beneficiando o apenado; também é possível sustentar que – como no caso concreto – a coisa julgada é garantia do direito fundamental à segurança dos demais membros da sociedade, que poderiam alegar a violação da cláusula da proibição de proteção de insuficiência (Untermassverbot). Em segundo lugar, a questão poderia ser discutida simplesmente em sede de execução penal, sem referência à decisão do STF (porque não vinculante), mas a partir da aferição dos requisitos subjetivos verificados a partir dos respectivos laudos técnicos (afinal, há diferenças entre o processo penal e a execução penal stricto sensu).
E não venha se afirmar que, de qualquer modo, o STF ou o STJ, em sede recursal, concederá o benefício, tornando “inócua” qualquer obstaculização nesta instância. Negativo. O que o STF fará é definir a possibilidade de o apenado receber a progressão, mas desde que obedecidos os requisitos subjetivos. Em nenhum momento a decisão do STF dispensa o exame cuidadoso das especificidades do caso concreto. Aliás, o STF não concede diretamente qualquer benefício. Não é a sua função. A concessão do benefício é tarefa do juiz da causa, na concretização da lei no caso concreto.
Assim, prejudicada a análise da questão referente a eventual novo lapso temporal para a progressão de regime em crime hediondo - aventada pelo operoso Promotor de Justiça João Afonso Silva Beltrame -, uma vez que acolhida a primeira tese esgrimida (impossibilidade de violação da coisa julgada com fundamento em decisão do STF proferida em sede de controle difuso), entendo ser caso de provimento do recurso ministerial, reformando-se a decisão recorrida, por dois fundamentos:
a) primeiramente, porque não se pode transpor o óbice da coisa julgada com fundamento em decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do controle difuso, por todas as razões aventadas;
b) em segundo lugar, porque não é possível verificar, no caso, a presença do requisito subjetivo indispensável para a concessão do benefício. Em outras palavras: mesmo que a decisão fosse em sede de controle concentrado, ainda assim não haveria dispensa do exame das especificidades do caso concreto.
20. Numa palavra final: ainda que se pudesse atribuir eficácia erga omnes a decisão do Supremo Tribunal Federal proferida em sede de controle difuso, o que, de todo, é equivocado em face da força normativa do art. 52, X, da Constituição (afinal, trata-se de um dispositivo constitucional), o juiz da causa deve apreciar o caso e decidir de modo adequado as especificidades da situação concreta de aplicação (Adwendungsdiskurs). Insisto: se o juiz – que, repita-se, em qualquer decisão, estará sempre fazendo jurisdição constitucional, como tenho referido em vários textos - não o fizer, ele estará ferindo os princípios (e princípios são princípios vinculativos) constitucionais da fundamentação das decisões (art. 93,IX), do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LIV) e da inafastabilidade da tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV), os quais desde já prequestiono para fins de interposição de recurso extraordinário, nos termos da tradição constitucional que conforma o sistema jurídico de terrae brasilis.
Afinal, não é porque prima facie o condenado pode fazer jus a progressão da pena que ele sempre, e em qualquer caso, o fará. Onde está a comprovação do requisito subjetivo, no caso concreto? Sabemos muito bem que o caso faz parte da construção da decisão, como diria Klaus Günther, assim como Müller (ver, também, o meu Verdade e Consenso, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006). Trata-se de uma questão hermenêutica intransponível, pois como uma norma prima facie aplicável – pensemos na lei – deveria ser aplicada sem se considerar os elementos do caso concreto? Teríamos a “norma perfeita”, porque, afinal, estaria abarcando, de antemão, todas as hipóteses de aplicação. Com isso, os intérpretes e os juízes estariam dispensados. É, em síntese, lamentavelmente, o que está ocorrendo em nosso país. Remove-se obstáculo à progressão de regime – representado pela coisa julgada - por mera Ordem de Serviço!
É o parecer.
Porto Alegre, 17 de maio de 2006.

LENIO LUIZ STRECK PROCURADOR DE JUSTIÇA

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O Ministério Público que queremos e estamos edificando, pois, com férrea determinação e invulgar coragem, não é um Ministério Público acomodado à sombra das estruturas dominantes, acovardado, dócil e complacente com os poderosos, e intransigente e implacável somente com os fracos e débeis. Não é um Ministério Público burocrático, distante, insensível, fechado e recolhido em gabinetes refrigerados. Mas é um Ministério Público vibrante, desbravador, destemido, valente, valoroso, sensível aos movimentos, anseios e necessidades da nação brasileira. É um Ministério Público que caminha lado a lado com o cidadão pacato e honesto, misturando a nossa gente, auscultando os seus anseios, na busca incessante de Justiça Social. É um Ministério Público inflamado de uma ira santa, de uma rebeldia cívica, de uma cólera ética, contra todas as formas de opressão e de injustiça, contra a corrupção e a improbidade, contra os desmandos administrativos, contra a exclusão e a indigência. Um implacável protetor dos valores mais caros da sociedade brasileira. (GIACÓIA, Gilberto. Ministério Público Vocacionado. Revista Justitia, MPSP/APMP, n. 197, jul.-dez. 2007)