Condição
Inconstitucional ao Cumprimento Imediato da Condenação pelo Júri
A Lei n.º 13.964/2019, oriunda do
“Pacote Anticrime” apresentado no início de 2019 pelo Executivo, entrou em
vigor em 23 de janeiro de 2020 e alterou diversos dispositivos afetos à
legislação penal e processual penal. Dentre as mudanças, chama a atenção a
inovação relacionada ao artigo 492, I, “e”, do Código de Processo Penal, que
prevê a execução imediata da condenação pelo Tribunal do Júri quando a pena aplicada
for igual ou superior a 15 anos de reclusão.
Para não perderem o costume,
muitos criminalistas, públicos e privados, passaram a defender a
inconstitucionalidade do referido dispositivo sob o argumento de que ele fere os princípios da presunção de inocência e do duplo grau de
jurisdição[1].
De fato, o dispositivo em questão
é, sim, inconstitucional, mas por outro fundamento, muito claro por sinal. Ao
estabelecer marco quantitativo de pena para fins de autorização do cumprimento
imediato da condenação, a alínea em tablado fere de morte a principiologia da
Instituição do Tribunal do Júri, sobretudo uma de suas viga-mestras, qual seja,
a soberania dos veredictos.
O Tribunal do Júri é expressão
máxima da democracia judicante. Daí que a Justiça Popular, prevista no artigo
5º, inciso XXXVIII, da Constituição Federal merece análise banhada em abundante
honestidade e responsabilidade intelectual, e jamais deve ser examinada com
olhos generalistas, interessados na impunidade. Afinal, em meio a essa
desbragada matança em que, anualmente, cerca de 60 mil pessoas são assassinadas
no país, o direito à vida há de ser urgentemente reafirmado com implacável austeridade.
O Poder Constituinte Originário
estabeleceu pilares à Instituição do Tribunal do Júri, cuja missão e raison
d’être são impedirem qualquer espécie de ingerência ilegítima ou
indevida por parte do Executivo, Legislativo e Judiciário. Esses pilares,
riscados em pedra, estão expressos no texto constitucional. São eles: plenitude
de defesa, sigilo das votações, soberania dos veredictos e competência mínima
para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Logo, não há espaço argumentativo
legítimo para se igualar sistemas desiguais. A Justiça Popular difere da
Justiça Togada, porque nela reside a soberania popular, a cidadania e a
democracia. É realizada sem intermediários, senão diretamente pelo titular de
todo o poder e, por isso, tem implicações diferentes, como pode ser verificado
na sequência.
A soberania dos veredictos é o único símbolo
da soberania popular no seio do Judiciário. Quando o direito de viver é atacado,
os jurados são os magistrados últimos e o Tribunal do Júri é a Suprema Corte,
ou seja, nos "crimes de sangue", a análise de mérito sobre os fatos é
de exclusividade do corpo de jurados. Na Constituição Federal não há palavras
inúteis. O termo "soberania dos veredictos" é unívoco. Segundo o
texto constitucional, é o povo quem dá a última e definitiva palavra nos crimes
dolosos contra a vida, cujas decisões estão imunes à alteração/substituição por
qualquer outro órgão judicial.
Ademais, segundo o princípio da
plenitude de defesa, no Tribunal do Júri haverá a autodefesa, a defesa técnica
e a possibilidade de utilização de argumentos e teses jurídicas e/ou extrajurídicas
na busca do convencimento do corpo de jurados. O acusado, então, dispõe de
fortes instrumentos para uma defesa efetiva ante os efeitos dos veredictos
soberanos, sendo um deles o cumprimento imediato da pena. Não bastasse isso, há
obrigatoriedade de submissão do quesito referente à absolvição genérica ao
Conselho de Sentença, mesmo que a defesa não tenha apresentado tese
absolutória. Ainda, vale salientar que é atribuição da presidência do Tribunal
do Júri dissolver o Conselho de Sentença quando considerar o acusado indefeso.
A experiência demonstra que, em
regra, a decisão popular manifestamente contrária à prova dos autos ocorre no
caso de absolvição arbitrária, uma vez que, para fins de julgamento pelo
Tribunal Júri, o mesmo foi devidamente filtrado pelo Judiciário, tanto pelo
recebimento da denúncia como pela pronúncia (prova da existência do crime e de
indícios suficientes de autoria/participação) - muitas vezes com sua
confirmação pela instância recursal -, o que torna raro que um processo sem
lastro probatório mínimo para a condenação seja submetido à apreciação dos
jurados. Assim, no Tribunal do Júri, há maior risco de absolver o culpado do
que condenar o inocente, em razão de todo o processamento dos crimes dolosos
contra a vida.
Após essa filtragem do caso pelo
Judiciário e, em seguida, a discussão exaustiva da causa pelas partes em
plenário, sete cidadãos idôneos, com ciência, inteligência e consciência,
proferem os veredictos segundo a ideia do justo. Com efeito, é um equívoco
partir do pressuposto de que os jurados erram no julgamento ou que há nulidade
processual, ao condicionar o início do cumprimento da pena à quantidade ou à confirmação
da condenação pelo Tribunal de Apelação ou, pior ainda, ao trânsito em julgado
da condenação.
É inegável que a apelação de
sentença condenatória do Tribunal do Júri é diferente de apelação de sentença
condenatória do juízo singular. Nesta a rediscussão e revisão da causa são
amplas, ao passo que naquela são muito restritas, por força da soberania dos
veredictos. Noutras palavras, a execução da sentença condenatória do Tribunal
do Júri não pode ficar suspensa pelo simples fato de não ter alcançado determinado
patamar quantitativo de sanção ou por haver a opção de recurso, como se fosse um
salvo-conduto impeditivo do início do cumprimento da pena, já que é vedada
qualquer alteração/substituição dos veredictos populares por decisão judicial.
Em caso de nulidade aberrante
e/ou decisão condenatória divorciada do conjunto probatório, comprovadas
documentalmente de plano, há a possibilidade de garantia do jus
libertatis pela via de habeas corpus ou medida de
concessão de efeito suspensivo em sede recursal. Para tanto, houve o incremento
pela novel lei de mecanismos para salvaguardar tal direito, na linha dos novos
§§3º, 5º e 6º do artigo 492 do Código de Processo Penal. Nunca é demais lembrar que esses
casos são a exceção, e a exceção não pode fazer a regra.
O cumprimento imediato da pena
não fere o princípio da presunção de inocência pois resguarda a proteção
eficiente do direito à vida, da democracia, da cidadania e da segurança de
todos. Aliás, se nem a vida é direito absoluto, não há justificativa apta para autorizar
que o princípio da presunção de inocência o seja. Além disso, não há violação
ao princípio do duplo grau de jurisdição, haja vista a restrição de análise por parte das instâncias recursais afeta às condenações oriundas do Júri. E não é só isso, já que este princípio, como
aquele, também não é absoluto.
Logo se vê que a opção
legislativa em condicionar o cumprimento imediato da condenação pelo Tribunal
do Júri ao quantum da pena viola os pilares e a razão de ser da democracia
judicante residente nessa quadra de julgamento. É, pois, inconstitucional[2].
A escolha legislativa do marco quantitativo de 15 anos de reclusão não encontra
sustentação em qualquer base racional, principalmente na lógica do sistema constitucional,
penal e processual penal.
A propósito, a condição legislativa de quantidade
de pena abre espaço para discricionariedade judicial temerária, pois, a
depender da ideologia do órgão judicial sentenciante, em sua dosimetria, a pena
poderá ser customizada para atingir ou não os 15
anos de reclusão. Vale dizer, a dosimetria penal poderá ser manipulada ao gosto da
presidência do Júri, para encarcerar ou não o condenado, gerando, assim,
insegurança jurídica.
O Júri é soberano. Jogos de
linguagem não podem destituir o sentido unívoco da expressão “soberania dos
veredictos”. As decisões dos jurados materializam a soberania do soberano. Se o Conselho de Sentença absolveu, há que se expedir o alvará de
soltura. Se, ao contrário, condenou, há que se expedir a guia de execução penal
para o início imediato do cumprimento da pena, seja qual for o quantum de
sanção e o regime penitenciário fixados. Salta então aos olhos que essa condição legislativa - marco quantitativo de pena para a imediata execução da condenação pelo Tribunal Popular - é flagrantemente inconstitucional.
Basta um fiapo de lucidez para se
concluir que alguém, após ser plenamente defendido, julgado publicamente e condenado pelos donos do poder por atacar a existência de outra pessoa, sair do Tribunal do Júri em liberdade é uma afronta ao direito à vida, à coesão social, ao sentimento
mais básico de justiça, à soberania popular, à democracia e à cidadania É um escárnio à
família pranteada, à sociedade desfalcada e à comunidade indignada. O sentimento de impunidade é deletério à ordem social, ao progresso
civilizacional e, principalmente, à proteção dos direitos humanos.
Por óbvio, o cumprir a Constituição Federal nesse aspecto significa menos
injustiça, menos assassinos soltos - aquilo que importa à sociedade, como um
todo.
Por César Danilo Ribeiro de
Novais, Promotor de Justiça do Tribunal do Júri e autor do livro “A Defesa da
Vida no Tribunal do Júri”.
[1] Citam
também o resultado do julgamento pelo STF da ADC n.º 43.
[2] É possível que o dispositivo em questão possa ser interpretado conforme a Constituição Federal, pela técnica da redução de texto, para atacar-se tão somente o marco quantitativo de 15 anos de reclusão, e, assim, abarcar-se toda e qualquer condenação pelo Júri, independentemente do montante de pena aplicada. A propósito, o Supremo Tribunal Federal deve começar a julgar no dia 12 de fevereiro de 2020
se a soberania do Tribunal do Júri autoriza a execução imediata de pena imposta
pelo Conselho de Sentença, matéria que será apreciada no Recurso Extraordinário (RE) 1.235.340/SC. Oxalá, a Corte Suprema decida em favor da democracia judicante,
da cidadania, da democracia e, principalmente, da reafirmação do direito à vida
e em defesa da sociedade.
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