O
Tribunal do Júri em Tempo de Pandemia
Em 2016, o aclamado
escritor sul-africano Deon Meyer publicou o romance “Fever”, em que,
coincidentemente, aborda como pano de fundo uma pandemia de coronavírus que
assola o globo terrestre, dizimando vidas humanas. Impressiona a semelhança da trama desenhada no livro com o atual surto de Covid-19. A ficção parece
ter se tornado realidade, aproximando-se de uma profecia. Como no livro, a
pandemia vem promovendo retumbante quebra de paradigmas na sociedade.
A pandemia obrigou-nos à revisão
de conceitos e práticas em vários setores das atividades humanas. A prática
judiciária não ficou imune.
Durante a pandemia de Covid-19, a tecnologia, na medida do possível, está cooperando para a
continuidade da prestação jurisdicional. O Judiciário adotou o regime de home office
e sistemas tecnológicos para o cumprimento dos atos processuais, incluindo-se
julgamentos virtuais.
No entanto, a jurisdição
penal popular, abrigada pelo Tribunal do Júri e exercida pelo povo nos “crimes
de sangue”, encontra-se obstada por razões óbvias.
Segundo o sistema constitucional
vigente, o julgamento pelo Tribunal do Júri é dupla garantia, pois, se, de um
lado, garante o direito do acusado de prática de crime doloso contra a vida ser
julgado por seus pares, por outro lado, garante o direito do povo, como fonte
primária do poder, em dar a última e definitiva palavra no caso penal, através
de seus soberanos veredictos, como expressão da democracia e cidadania no seio
do Judiciário.
Embora seja impossível
que o Legislativo suprima o julgamento pelo Tribunal do Júri, por ser cláusula
pétrea, tornou-se cada vez mais difícil implementá-lo durante a
pandemia. A dinâmica e liturgia do plenário do Júri reúnem considerável chance de
violação das ordens de distanciamento social atualmente em vigência pelo país.
Isso nos leva a esta
indagação: como podemos proteger o direito constitucional a julgamento pelo
Júri, sem comprometer a saúde das pessoas envolvidas (vítima, acusado, defensor,
promotor de justiça, juiz presidente, jurados, serventuários da justiça,
policiais, testemunhas e peritos), que estão cumprindo suas obrigações funcionais
e cívicas?
Os obstáculos começam
desde a seleção dos jurados, passando pela intimação de testemunhas, traslado
do acusado até o fórum, se preso estiver, composição do Conselho de Sentença,
instrução em plenário, sustentações orais e deliberação dos jurados na sala
secreta. Por exemplo, a bancada do Conselho de Sentença, que acomoda os 7
jurados, na maioria dos plenários, possui assentos muito mais próximos do
que um metro e meio.
Ao lado desses entraves, fala
alto o princípio da razoável duração do processo, principalmente nos casos em
que o acusado se encontra preso preventivamente, cuja prisão deve ser relaxada quando
for detectado o abuso por parte do estado, consubstanciado no excesso de prazo
na formação da culpa.
Logo, os julgamentos pelo
Tribunal do Júri não podem ser suspensos indefinidamente, pois, além da
violação ao direito à vida exigir rápida resposta estatal, o acusado tem o
direito de ser julgado em prazo razoável e a sociedade não pode ser desprotegida
com a liberdade de pessoas com significativo potencial de ofender à paz social
etc.
Então, tudo deve ser muito bem analisado pelo Poder Judiciário a fim de retomar o julgamento
pelo Júri, com a implementação de medidas que impeçam a propagação do vírus. E
o que fazer para viabilizar as sessões de julgamento pelo Tribunal do Júri, com
a observância dos protocolos de ordem sanitárias?
Entre outras medidas, apontamos algumas. O cuidado deve ser
adotado desde o sorteio dos jurados, priorizando aqueles que estejam fora dos
grupos de risco e, quando possível, vacinados. É preciso instalar divisórias de acrílico como barreira física entre os presentes. Os julgamentos devem incidir sobre processos que ostentam
acusados presos, por serem casos criminais mais prementes. O princípio da publicidade deve conviver com a nova realidade, o que reclama a transmissão da sessão de julgamento por meio de plataforma virtual e, dessa forma, cooperar para a redução do número de pessoas no plenário. Os jurados devem
estar protegidos pelo distanciamento seguro entre eles, se possível, acomodando-os
em local onde costumeiramente é ocupado pela assistência. Devem ser disponibilizados
álcool em gel e máscaras descartáveis para os presentes. Deve-se preferir a
utilização de recursos audiovisuais para a instrução em plenário. É recomendável que a prova oral (testemunhos e interrogatório) seja colhida por videoconferência. Desde que não haja comprometimento da verdade real, as partes podem cooperar com a dispensa de oitiva de testemunhas, caso já tenham sido
ouvidas na fase do sumário da culpa - com a exibição ao Conselho de Sentença antes do interrogatório - ou o testemunho não seja relevante para o julgamento do caso. E, claro, todos os presentes devem ser submetidos à testagem antes do início da sessão para identificação de eventuais infectados.
Essas são algumas das principais ideias
a serem alvo de estudo para fins de implementação por parte do Judiciário, com
o apoio do Ministério Público, Defensoria Pública e Advocacia, com os olhos
voltados à retomada dos julgamentos pelo Tribunal do Júri.
Tal como está, não
devemos esperar que os julgamentos pelo Júri sejam retomados em tempo tão curto.
A pandemia, tal qual na ficção literária, promoveu – e continuará promovendo -
várias mudanças nas relações interpessoais que refletirão na prática judiciária. Sem dúvida, isso também engloba o funcionamento do Tribunal Popular.
Logo se vê que os
julgamentos pelo Tribunal do Júri podem ser retomados, possivelmente, ainda
este ano, desde que sejam, estrategicamente, planejadas e implementas todas as
medidas necessárias à proteção da saúde das pessoas envolvidas na produção
democrática da justiça. Afinal, ao lado da pandemia de Covid-19, que dizimou e
dizimará milhares de vidas, caminha, há passos largos, a epidemia que também extermina e exterminará outros milhares de vidas, que é a violência sanguinária
protagonizada por assassinos espalhados pelo Brasil, cuja resposta estatal não
pode se perder na poeira do tempo.
Por César Danilo
Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça do Tribunal do Júri.
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