Confissão
Qualificada no Homicídio
Em 1959, Tom Jobim e Newton Mendonça, num dos
pontos altos da Bossa Nova, compuseram a música “Samba de uma nota só”: “Eis
aqui este sambinha / Feito numa nota só / Outras notas vão entrar / Mas a base
é uma só…”
Não raro, a tática defensiva do acusado perante os
jurados é a confissão qualificada. Em seu interrogatório, quando confessa ser o
autor do crime, apresenta estas velhas e surradas versões: (a) “(...) Daí ela,
a vítima, colocou a mão na cintura, como se fosse puxar uma arma,
daí eu me defendi...”; ou (b) “(...) Daí ela, a vítima, me xingou e/ou deu um
tapa no meu rosto, o que me fez perder a cabeça e fazer isso
aí...”. É o samba de uma nota só. É o enxerto da mentira na
tentativa de engazopar o Conselho de Sentença em busca da impunidade
(absolvição por legítima defesa ou condenação no homicídio
privilegiado por ter “agido” sob o domínio de violenta emoção logo em seguida à
injusta provocação da vítima). A função dessa estratégia de defesa é confundir
os jurados no julgamento da causa. Visa infectar o processo penal de interesses
tacanhos e nocivos à busca da verdade.
O Código Penal prevê a confissão espontânea como
circunstância atenuante da pena. Tal benesse é fruto da colaboração para a
descoberta da verdade. Por conseguinte, o acusado deve esclarecer as
circunstâncias de fato da causa de modo completo e conforme a verdade para
fazer jus à redução da sanção penal. Logo, não é qualquer confissão que
autorizará a incidência dessa benesse legal.
Conforme o dicionário Houaiss, “confissão significa
revelação de própria culpa, crime, pecado etc.”. Está diretamente ligada à
ideia de arrependimento pelo mal praticado. São as vias intelectivas e as vias
cordianas do agente revelando o mal praticado na sua inteireza, com
sinceridade, sem maquiagem, sem falsidade ou desculpa esfarrapada.
Segundo o art. 389 do CPC, há confissão quando a
parte admite a verdade de fato contrário ao seu interesse e favorável ao do
adversário. Embora referida previsão legislativa não encontre idêntica
reprodução na lei adjetiva penal, é inequívoco que tal conceito legal cabe como
uma luva no processo penal (art. 3º do CPP).
Logo se vê que o escopo da referida atenuante é
“premiar” o agente que se mostra claramente arrependido pelo que fez a partir
de uma narrativa sincera, franca e honesta sobre os fatos na sua integralidade,
e não apenas sobre o crime a seu bel-prazer[1]. A redução da pena, então,
é a contrapartida estatal pela admissão do acusado de fato contrário e
prejudicial a si próprio, qual seja, a acusação apresentada pelo órgão
acusatório.
Na maioria dos casos, basta analisar a prova oral e
exercitar um mínimo de raciocínio lógico para repudiar a incidência da
atenuante da confissão, pois o agente, apesar de admitir a autoria delitiva,
afirma ter agido em estado de legítima defesa ou em violenta emoção
logo em seguida à injusta provocação da vítima, o que, em regra, é
desbragadamente falso, frente às provas do processo. Ou seja, ele busca a
absolvição ou a redução da pena, calcado em versão antagônica ao conjunto
probatório. Arrisca com a apresentação de versão distorcida dos fatos na
esperança de ser por ela beneficiado. Não há colaboração na busca da verdade
nem lealdade processual. Por isso, não pode ser beneficiado com a redução
do quantum de pena pois alterou a verdade dos fatos visando
proveito próprio.
Na verdade, o assassino, comme d’habitude,
distorce os fatos mediante falsa narrativa, com olhos voltados exclusivamente à
impunidade. Ele quer matar, decide matar, age para matar atacando a vida
alheia, mas não quer pagar pelo malfeito e, por isso, mente para criar obstáculos
à punição estatal. Apresenta, na realidade, uma pseudoconfissão, oriunda da ausência
de animus confitendi – na confissão genuína, se pressupõe a vontade de
dizer a verdade quanto aos fatos.
Como é sabido, a existência da atenuante em questão
não depende de simples conduta objetiva, mas reclama um motivo moral e
relevante, em que haja, especialmente, demonstração de arrependimento do agente
e espírito de lealdade com a verdade processual, e sem buscar valer-se de
circunstância que apenas o beneficie.
Assim, como a confissão se mostra divorciada da
verdade com o único escopo de subtrair-se à responsabilidade penal justa, não
se está diante de confissão plena, capaz de cooperar para a solução do processo
e, por consequência, de reduzir a pena. Ora, ninguém - muito menos o assassino
- pode ser beneficiado por lançar mão de artifício ou expediente astucioso, utilizado
para induzir alguém a erro de entendimento (julgamento da causa).
O Supremo Tribunal Federal decidiu que "a natureza qualificada da confissão a partir da negativa do aspecto criminoso da conduta afasta a possibilidade de aplicação da circunstância atenuante" (AP 892 ED/RS, Rel. Min. Luiz Fux, 1a T., j, 06/09/19).
Não bastasse isso, deve-se dar um zoom na Súmula
545 do Superior Tribunal de Justiça, que assim dispõe: “Quando a confissão for
utilizada para a formação do convencimento do julgador, o réu fará jus à
atenuante no art. 65, III, “d”, do CP”. Disso decorre que, ao repudiarem as
teses da defesa (absolvição por legítima defesa e/ou homicídio privilegiado),
quando da votação dos quesitos, os jurados, no exercício da soberania popular
(art. 1º, da CF), não levaram em consideração a versão do acusado na construção
dos veredictos e consequente julgamento da causa.
Logo, por outras palavras, o Conselho de Sentença
não admitiu a tal confissão qualificada[2], que, por óbvio, não
ostenta poder para atenuar a pena, conforme bem delineado na citada súmula.
Entendimento contrário fere de morte o princípio da soberania dos veredictos,
pois, ao analisarem e repudiarem as teses defensivas decorrentes de confissão
qualificada, a lógica indica que os julgadores populares não a utilizaram para
a solução da causa.
Por consequência, ao reconhecer referida
circunstância atenuante na sentença condenatória, a presidência do Tribunal do
Júri incorre em claro equívoco por desconsiderar a lógica por de trás dessa
benesse legal e por violar a soberania dos veredictos, já que a maioria dos
jurados rejeitou a tese defensiva, expressada pela confissão qualificada.
Em conclusão, quem escolheu atacar a vida alheia
não pode, escorado em versão rejeitada pelos jurados, ser beneficiado pela
atenuação da pena em razão do indevido reconhecimento de confissão espontânea. A
impostura não deve ser tolerada – muito menos premiada - no ambiente forense,
sobretudo quando se está diante de conduta que ataca o mais importante dos
direitos humanos, qual seja, o direito de existir. Conclusão diferente
importará em concordância com erro judiciário e impunidade, mediante cortesia com sangue alheio.
Por César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de
Justiça do Tribunal do Júri e autor do livro “A Defesa da Vida no Tribunal do
Júri”.
[1]
São de Moacyr Amaral Santos as considerações sobre este móvel da parte para a
confissão: “Se o confitente reconhece verdadeiros fatos contrários ao seu
interesse, é porque sobre este prevalece o seu respeito pela verdade, seja
impulsionado pelo amor ou consideração à própria verdade, seja por motivos
outros que o impelem a ser verdadeiro e não passar por mentiroso. O principal
fundamento da confissão é de ordem psicológica, consistente na regra
moral que obriga a dizer a verdade” (SANTOS, Moacyr Amaral. Comentários ao
Código de Processo Civil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, v.4, p. 99)
[2] No mesmo sentido, decidiu
o STJ, no AgRG no Agravo em recurso especial 840.995/PR, julgado no dia
05/09/2019. Essa também é a posição da
Corte Suprema: “A confissão qualificada não é suficiente para justificar a
atenuante prevista no artigo 65, III, “d”, do CP” (STF - HC 119671, j.
05/11/2013).
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