De saída, uma indagação: a soberania dos veredictos é apenas
garantia fundamental do acusado? Há gente na praça jurídica
respondendo “sim” e que, por isso, não poderia ser utilizada em
seu desfavor, com o imediato cumprimento da condenação pelo Júri.
Mas há boa dose de desonestidade intelectual nessa resposta, como se
vê na sequência.
Em
1976, foi publicada “Marcelo, Marmelo, Martelo”, uma obra-prima
da literatura infantojuvenil brasileira, fruto da pena de Ruth Rocha,
que foi lida por milhares de pessoas miúdas, e até graúdas, de
muitas gerações. O livro narra a história do menino Marcelo que dá novos
nomes às coisas. O ponto alto da narrativa ocorre quando a casinha
do cão Godofredo pega fogo e ele não consegue se fazer entender por
meio de sua forma de falar: “embrasou a moradeira do latildo!”.
Logo, ninguém entende o que estava ocorrendo e a casinha vira cinzas.
Uma
das lições que se extrai da obra é que as coisas devem ser
chamadas pelo nome. É a importância da linguagem como meio de
comunicação interpessoal. Há um sentido nos nomes. A mudança de
nome pode ser fonte de confusão. As coisas devem ser vistas como
são, sem relativismos.
Esse
clássico da língua portuguesa serve muito bem de bússola aos
intérpretes dos textos legais. No mundo jurídico, não é incomum a
relativização, e até a mutação, de palavas no processo
hermenêutico. Na maioria das vezes, trata-se de manobra interessada,
cuja agenda é oculta. A (pseudo)análise desinteressada serve apenas
para enganar incautos e desatentos.
Na
realidade, há palavras presas a determinado sentido. Uma delas é a
vida, segundo a qual, sob a perspectiva lógica e jurídica, é a
fonte de todos os interesses e direitos dos humanos. A vida é
soberana. Outra, é a matriz de todo poder: o povo.
Segundo
o sistema jurídico brasileiro, incumbe ao Tribunal do Júri julgar
as condutas humanas, deliberadamente, ofensivas ao direito à vida. E
essa esfera de foro judicial tem por expressão máxima a vontade
popular, que é a fonte primária do poder. É a soberania do povo
quem dita a jurisdição penal. O julgamento pelo Tribunal do Júri
revela o sentimento e o modelo de justiça entranhados no seio da
sociedade, em total conexão com a realidade social.
A
irmã siamesa da soberania popular é a soberania dos veredictos. O
povo é quem dá a primeira e a última palavra nos crimes dolosos
contra a vida. Ou seja, quando a vida é atacada, os jurados são os
magistrados últimos e o Tribunal do Júri é a Suprema Corte.
Nessa
linha, pouco esforço é preciso para se perceber que, no Tribunal do
Júri, há duas protagonistas bem definidas, quais sejam, a soberania
da vida e a soberania do povo. É verdade que o acusado tem a
garantia de ser julgado por seus pares. Mas a coisa não para por aí.
É uma dupla garantia, porque ao povo é garantido o direito de
participar da administração da justiça nos crimes que ofendem o
maior de todos os direitos.
Então,
a vida, em toda a sua essência e extensão, é o direito a ser
protegido pelo povo, como detentor de todo o poder. Não pode o
Tribunal do Júri servir de escudo aos malfeitores, que desprezam a
soberania da vida e atacam a existência de um semelhante.
Melhor
dito, a soberania popular deve reverência à soberania da vida. Isso
significa dizer que a análise e a interpretação da ordem jurídica
deve reafirmar a proteção do direito à vida por parte do
povo-julgador. Não há espaço para eleição de hermenêutica que
relativize a importância da vida, nem que a enfraqueça, sob pena
de desprotegê-la. É crucial que os jurados entendam que eles devem
ser imparciais em relação aos fatos e às provas, mas parciais em
relação à proteção do direito à vida. Por consequência, a
interpretação da lei deve ser balizada pela máxima efetividade do
direito à vida. O Júri é mecanismo de defesa e reafirmação do
direito de viver. Não é um tribunal sobre morte, mas um tribunal
sobre vida.
As
decisões dos jurados devem ornar com a defesa do direito humano mais
importante que existe: o de viver! O descaso com a morte alheia é a
desvalorização da própria vida. É desumano desprezar a dor (luto)
do outro, ainda que seja um desconhecido. A morte de uma pessoa
importa a toda humanidade.
Logo
se vê que a soberania dos veredictos é consequência da soberania
popular, que, por sua vez, deriva da soberania da vida (vida, povo,
sociedade, nação e Estado). É o exercício direto do poder por seu
titular. O povo julga "crimes de sangue" com o selo da
democracia. Não se restringe a figurar como garantia do acusado, como estão sustentando por
aí. É muita desonestidade intelectual, com a agenda oculta da
impunidade. A balança da justiça tem dois pratos, e não apenas um como muitos pretendem pintá-la.
O
intérprete do Direito Penal e Processual Penal, incluindo o jurado,
a exemplo de Ulisses, deve estar amarrado ao mastro (da razão) para
não cair na sedução do canto mortal (interpretações laxistas
pró-impunidade) das sereias. Trata-se de providência vital às expectativas
sociais, à segurança pública e à paz social.
Infelizmente,
há muitos juristas que tentam passar a impressão aos
leitores/ouvintes que suas análises entorno de temas jurídicos são
imparciais, quando, na verdade, são expressões de inclinações e
preferências pessoais. Autointeresse, despido de neutralidade.
É
uma afronta à sociedade o fato de alguém, após ser acusado,
plenamente defendido, julgado e condenado soberanamente pelo povo por
ter atacado a vida alheia, sair livre do Tribunal do Júri. Isso vai
na contramão da ordem natural das coisas e do sentimento mais básico
de justiça. Absolvido: rua. Condenado: cadeia!
É
preciso não se deixar confundir por pretextos e alegações que
amortecem e paralisam o intelecto. A batalha de proteção e
reafirmação da vida nunca termina. É preciso estar sempre
vigilante. A sociedade precisa de intérpretes da lei, dos fatos e das provas mobilizados pelo espírito
da persistência nessa missão.
Portanto,
ainda que tentem relativizar ou modificar o sentido das palavras, a
exemplo do protagonista do clássico de Ruth Rocha, o menino Marcelo,
não se poder aceitar placidamente esse tipo de impostura
intelectual. Não! As palavras - soberania da vida, do povo e dos
veredictos - precisam ser respeitadas, e jamais deformadas ou
neutralizadas, para que não virem cinzas tais qual a casinha de
Godofredo.
Por
César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça do Tribunal do
Júri.
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