23 de junho de 2025

SÍNDROME DE ESTOCOLMO NO FEMINICÍDIO

 

SÍNDROME DE ESTOCOLMO NO FEMINICÍDIO

Não são raros, infelizmente, os casos em que, durante o julgamento por feminicídio[1], a própria vítima, fragilizada, emocionalmente devastada ou ainda sob domínio psicológico do agressor, tenta atenuar sua responsabilidade criminal. À primeira vista, soa contraditório. Na essência, é a face mais cruel da dinâmica de dominação que estrutura os relacionamentos abusivos.

Nessas situações, cabe ao Ministério Público, na defesa da vida e dignidade da mulher, alertar os jurados de que, por vezes, é preciso salvar a vítima de si mesma. É nesse exato contexto que se revela a Síndrome de Estocolmo, fenômeno amplamente reconhecido pela criminologia e psicologia, em que a vítima desenvolve mecanismos inconscientes de defesa em favor de quem a violenta. Proteger quem lhe causou dor não reflete autonomia, mas o colapso emocional produzido por período de violência, que destrói sua autoestima e sua percepção da própria dignidade. A mulher, embora viva, pode já estar psicologicamente desfeita.

Noutras palavras, essa condição retrata o quadro mental de quem foi submetida a ciclos sucessivos de violência doméstica, marcado por medo crônico, impotência aprendida e extrema dificuldade de romper com o agressor. Fenômeno que escancara os efeitos devastadores da violência prolongada sobre sua saúde física, psíquica e social. Não se trata de consentimento ou fraqueza moral, mas de um mecanismo de sobrevivência, como ensina Dee L. R. Graham[2].

Diante de um cenário de opressão, medo e dependência, a mulher, para suportar, desenvolve laços afetivos distorcidos com quem lhe ameaça, controla e subjuga. Não é retratação consciente, mas efeito trágico da opressão estrutural que adoece e anula. E essa circunstância não absolve: condena. Escancara um relacionamento pautado pela opressão, pela violência, pela manipulação e pelo controle emocional. Mostra que o agressor não destruiu apenas o corpo, mas a identidade, o amor-próprio e a liberdade moral da vítima, mergulhando-a numa prisão psíquica que sabota sua capacidade de reação.

Por consequência, nesses casos, defender o direito ao silêncio da vítima a pretexto de evitar a reevitimização, como fazem alguns, não é proteger, mas sim perpetuar a violência. O cala-boca já morreu! Silenciar, aqui, é consentir com a opressão que a mantém cativa no ciclo de dor, cooperando com a impunidade do ofensor. O que se exige do Poder Judiciário e do Ministério Público não é conivência com um silêncio adoecido, mas a oferta de apoio psicossocial capaz de fortalecer a vítima, romper amarras emocionais e permitir que o Estado e a sociedade cumpram seu dever de enfrentamento firme e efetivo da violência contra a mulher.

É aqui que se impõe o espírito da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), que convoca o Estado e a sociedade a enfrentarem a violência doméstica de forma intransigente. Quando a vítima, em plenário, tenta proteger seu agressor, cabe ao Tribunal do Júri assumir esta missão de suma importância: ser instrumento de ruptura desse ciclo de dor, ainda que contra a vontade aparente da ofendida. A omissão, nesse contexto, não é prudência: é cumplicidade.

É fundamental compreender que o Tribunal do Júri julga sob dois prismas: um interno, que resolve o caso concreto; e outro externo, que comunica à sociedade quais valores são intangíveis e quais condutas são intoleráveis. Condenar o feminicida, mesmo quando a vítima não se reconhece como tal, é reafirmar que a vida da mulher é inviolável, mesmo que ela, já dilacerada, não consiga mais defendê-la. E se, no plenário, a mulher tenta proteger quem a destruiu, isso não apaga o crime. Ao contrário: ela própria se torna a mais contundente prova do ciclo de opressão que sofreu. Sua submissão não é escolha livre, mas efeito devastador de uma relação marcada pela violência, pela ameaça e pelo temor.

Em conclusão, justamente quando a vítima se mostra incapaz de reconhecer sua dor e seu valor, é que o Tribunal do Júri deve se agigantar como instrumento de resgate da dignidade perdida, reafirmando o compromisso da sociedade, representada pelos jurados, com a tutela da vida e a proteção integral da mulher violentada. Vale dizer: condenar é proteger. Absolver ou mitigar a responsabilidade do agressor é perpetuar a violência e, nesse gesto, fazer-se cúmplice dela.

✒️ César Novais, Promotor de Justiça do Júri e autor do livro “A Defesa da Vida no Tribunal do Júri”.



[1] “O feminicídio é o crime mais grave que existe. Consiste em dupla violação: (1) viola a fonte de todos os interesses, direitos e deveres humanos, qual seja, o direito à vida; e (2) viola a fonte geradora da vida, a mulher”. (NOVAIS, César. A defesa da vida no tribunal do júri. 4ª ed. Cuiabá: Editora Anacon, 2025, p. 92)

[2] GRAHAM, Dee L. R. Amar para sobreviver: mulheres e a síndrome de Estocolmo social. Tradução de Mariana Coimbra. São Paulo: Editora Cassandra, 2021.

Nenhum comentário:

Postar um comentário