Não
existe causa criminal sem defesa, porque existe a arte de defender o
indefensável. No mundo da argumentação, há ideias e teses para todos os gostos.
Há um cardápio infindável de palavras, frases, pensamentos e teses jurídicas e
metajurídicas e táticas posto à disposição de acusados. Basta criatividade dos
defensores em elegê-los e empregá-los no plenário do Tribunal do Júri. Um
exemplo eloquente do que acaba de ser dito aconteceu nos Estados Unidos, tanto na
vida quanto na arte.
Johnnie
L. Cochran Jr. foi expoente da advocacia criminal estadunidense. Faleceu aos 67
anos, em 2005. Em 1994, teve uma atuação polêmica e exitosa como advogado de O. J.
Simpson, astro de futebol americano, no julgamento envolvendo os assassinatos
de sua ex-mulher Nicole Brown Simpson e do amigo desta, Ronald Goldman, que
culminou com sua absolvição pelos jurados, apesar da quantidade considerável de
evidências.
O
livro “American Crime Story: O Povo Contra O. J. Simpson”, de Jeffrey Toobin,
relata com detalhes a estratégia defensiva que gerou veredicto absolutório. Dados
secundários foram alçados como se fossem principais. Questão racial foi
utilizada como pano de fundo da sustentação oral perante os jurados, quando se
lançou a ideia de que houve incriminação da polícia ao acusado por se tratar de
um homem negro. Houve o emprego da confusão no lugar do esclarecimento e da
informação.
Para
se ter uma ideia do sucesso da defesa criminal, importa dizer que houve dois
veredictos envolvendo esse caso. No processo criminal, onde é preciso provar
que o acusado é culpado “além da dúvida razoável”[1], incidiu a absolvição, ao
passo que no processo civil, onde o padrão probatório é menos exigente para o
julgamento procedente, qual seja, existência de “prova preponderante”, houve a
condenação. Ou seja, estabeleceu-se um paradoxo: O. J. Simpson, embora
declarado inocente na esfera criminal, foi obrigado a indenizar terceiros pelo duplo
homicídio no âmbito cível.
A
habilidade na obtenção de veredicto absolutório pela equipe de defesa liderada
por Johnnie L. Cochran Jr., para muitos, contra as provas dos autos e por força
da confusão, foi alvo de piada da série animada “South Park”, no episódio "Chef
Aid", exibido em 7 de outubro de 1998. Trata-se de uma sátira ao argumento
final do advogado Johnnie Cochran na defesa de O. J. Simpson, que ficou
conhecida como “Defesa Chewbacca”. Veja[2]:
“Cochran:
...Senhoras e senhores deste Júri, tenho uma coisa final que eu quero que
considere. Senhoras e senhores, este é Chewbacca[3]. Chewbacca é um Wookiee do
planeta Kashyyyk. Mas Chewbacca vive no planeta Endor. Agora pense nisso. Isso
não faz sentido!
Gerald
Broflovski: Droga!... Ele está usando a defesa Chewbacca!
Cochran:
Por que um Wookiee, de 8 pés de altura, quer morar em Endor, com um monte de
Ewoks de 2 pés de altura? Isso não faz sentido! Mas, o mais importante, que
você precisa se perguntar: o que isso tem a ver com esse caso? Nada. Senhoras e
senhores, não tem nada a ver com este caso! Não faz sentido! Olhe para mim. Eu
sou um advogado defendendo uma grande gravadora, e estou falando sobre
Chewbacca! Isso faz sentido? Senhoras e senhores, não tem sentido! Nada disso
faz sentido! E então vocês têm que lembrar, quando vocês estiverem na sala
secreta deliberando este caso, isso faz sentido? Não! Senhoras e senhores do Júri,
isso não faz sentido! Se Chewbacca vive em Endor, você deve absolver! A defesa terminou,
Excelência”.
A
declaração derradeira é uma paródia dos argumentos de encerramento de Cochran
no julgamento de O. J. Simpson, onde, referindo-se à luva encontrada no local
dos crimes, ele diz ao corpo de jurados: "Se não couber, você deve
absolver!".
A
associação indevida entre dados e casos distintos para instalar confusão na
mente do julgador é um dos truques favoritos de alguns defensores. Na
realidade, é o emprego da falácia lógica conhecida por “red herring” (“pista
falsa”), que serve para enganar e desviar a atenção daquilo que realmente
importa. Desorientar acerca do caminho certo a seguir. O emissor tem por objetivo levar o receptor de sua mensagem para
uma conclusão falsa, equivocada. Cuida-se de uma armadilha mental apresentada
pelo orador em busca de vantagem indevida, como a impunidade de culpado no
Júri.
Aposta-se na confusão. O caso é apresentado num formato enganoso. Essa técnica defensiva é muito utilizada nos plenários do
Tribunal do Júri brasileiro por uma razão muito simples: a pronúncia (art. 413
do CPP) depende de provas robustas para sua prolação, pois é imprescindível que
haja comprovação da materialidade do crime e de evidências suficientes de
autoria ou participação. A filtragem técnica do caso pelo Judiciário para ser
submetido ao Tribunal do Júri desagua na assertiva de que o risco maior nesse
julgamento é de absolvição de culpado, e não de condenação de inocente.
Por
isso, não raro, ante o conjunto probatório desfavorável ao acusado, só resta à
defesa funcionar como uma máquina de fazer fumaça. Assim, labora-se na
construção artificial da dúvida. Mistura-se o joio com o trigo, o principal com
o acessório, a informação com a desinformação, a verdade com a falsidade, e explora-se
textos fora de contexto, muitas das vezes com emprego de doutrina, teorias, jurisprudência ou matérias jornalísticas[4] de casos nada análogos ao que
está sendo julgado. Deturpa-se institutos jurídicos, com a banalização de
excludentes de ilicitudes e causas minorantes de pena, desprezando-se seus
requisitos legais, em clara desproteção do direito à vida. Mira-se a captura psíquica
do jurado para a implantação da confusão em sua mente e, assim, colher-se
veredicto injusto, que destoa dos fatos, das provas ou da lei.
Portanto, em resumo, trata-se da adoção de ideia atribuída ao 33º presidente dos Estados Unidos, Harry Truman: “Se não puder convencê-los, confunda-os”. Nesse caso, o Ministério Público deve detectar tal estratégia para, em seguida, denunciá-la, pela via do aparte ou réplica, ao Conselho de Sentença para que a verdade não seja confundida com a mentira e a justiça não seja substituída pela injustiça. Enfim, é poder-dever do agente ministerial, como curador da vida e promotor de justiça, informar os jurados da deletéria artimanha defensiva, com a finalidade de inviabilizar a impunidade: a absolvição de culpado ou o apenamento aquém do devido ao autor ou partícipe de assassinato, tentado ou consumado. É preciso, então, combater e neutralizar os efeitos da arte de defender o indefensável, porque ela existe e é uma ameaça concreta à justiça, à vida e à sociedade.
Por
César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça do Tribunal do Júri e autor
do livro “A Defesa da Vida no Tribunal do Júri”.
[1] Sobre o tema, vale a leitura de
ANDRADE, Flávio da Silva. Standards de prova no processo penal.
Salvador: Jus Podivm, 2022.
[2] Assista ao trecho do episódio: https://www.youtube.com/watch?v=_ZvQx1B7j_c
[3] Na série Star Wars (Guerra nas
Estrelas), Chewbacca, vulgo “Chewie”, é o copiloto da nave Millennium Falcon e
o melhor amigo de Han Solo, e um alienígena da raça Wookiee, oriundo do planeta
Kashyyyk.
[4] Inclusive com a exibição de vídeos
dramáticos e emotivos no final da tréplica, ocasião em que o Ministério Público
não terá a chance de refutá-los.
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