O Ensaio sobre a
cegueira, romance de José Saramago, em sua última página, com aquela
estranha pontuação, indaga e constata: “- Por que foi que cegamos, Não sei,
talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso,
Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que,
vendo, não veem”[1].
É exatamente isso que se nota ao analisar o que fazem a
doutrina e a jurisprudência pátria com o princípio da soberania dos veredictos
(art. 5º, XXXVIII, c, da CF). Cegos
que, vendo, não veem. Ao que tudo indica, por cegueira deliberada ante a
clareza do texto constitucional.
Ninguém nega que o princípio da soberania popular é o pilar
do regime democrático adotado pela República brasileira e que, por isso, o povo
é a fonte primária do poder.
Por ser soberano, o povo é quem dita a distribuição do poder
na estrutura do Estado. E esse poder é exercido direta ou indiretamente.
É verdade que grande parte do poder incide por meio da
democracia representativa e pequena parte ocorre pela via da democracia
participativa.
Das três funções exercidas pelo poder, a Executiva, a
Legislativa e a Judiciária, apenas esta última não conta com a participação do
povo na composição de seus agentes.
Logo se vê que o Tribunal do Júri é o que há de mais
democrático no âmbito do Judiciário. Ao prever o julgamento popular dos crimes
dolosos contra a vida, o legislador constituinte lançou uma lufada de
democracia nos fóruns de todo o país.
E o povo, representado por sete cidadãos idôneos, é o
responsável por declarar os veredictos no âmbito do Tribunal do Júri. E o faz
com soberania, que nada mais é do que o poder supremo frente aos demais órgãos
do Judiciário[2].
A soberania dos veredictos é filha da soberania popular.
Numa frase: segundo a Constituição, é o povo quem dá a última e definitiva
palavra nos crimes dolosos contra a vida.
Nenhum juiz, desembargador ou ministro têm ascendência sobre
os jurados. Isso significa dizer que somente o Tribunal do Júri pode rever seus
veredictos.
A partir dessa perspectiva é possível afirmar, com
segurança, que as condenações emanadas do Tribunal do Júri devem ser
imediatamente executadas. Afinal, os veredictos não podem ser substituídos por
decisões, sentenças ou acórdãos. Não importa a instância.
Cumpre registrar, nessa toada, que o Júri é um Tribunal e
não um simples órgão de primeiro grau sujeito às reformas recursais por parte
dos tribunais. Por óbvio, se houver sujeição a poder superior não haverá
soberania.
Noutras palavras, é inadmissível que a soberba da toga
substitua a soberania do povo. Basta um mínimo de honestidade intelectual para
não negar que a soberania dos veredictos é impassível de relativização, como
quer parte da doutrina e da jurisprudência.
Ora, é regra elementar de hermenêutica que texto fora do
contexto é mero pretexto para que o intérprete imponha sua vontade, inclusive
para afirmar que o redondo é quadrado. E isso é inadmissível, ainda mais no que
se refere ao texto constitucional, cujo princípio da soberania dos veredictos
cobra sua máxima efetividade.
Fica evidente, assim, que as condenações emanadas do
Tribunal do Júri reclamam o cumprimento imediato da pena imposta. Por
consequência, ainda que o acusado esteja respondendo à ação penal solto, se
condenado à pena privativa de liberdade em regime incompatível com o direito de
ir e vir, deve ser ele imediatamente recolhido ao cárcere.
Outro não é o entendimento do Ministro Luís Roberto Barroso
registrado nos julgamentos das Ações Diretas de Constitucionalidade 43 e 44 (05/10/2016)
e no Habeas Corpus 118.770/SP
(07/03/2017): “A condenação pelo Tribunal do Júri em razão de crime doloso
contra a vida deve ser executada imediatamente, como decorrência natural da
competência soberana do júri conferida pelo art. 5º, XXXVIII, d, da CF”.
Vale realçar, com tintas fortes, que não há qualquer
violação ao princípio da presunção de inocência, já que essa interpretação
resguarda a proteção eficiente da vida, da democracia e da segurança de todos[3].
Os jurados podem errar, já que soberania não é sinônimo de
infalibilidade. Mas, como adverte Antonio Miguel Feu Rosa[4], “em caso de erro, o povo,
como os indivíduos, suporta muito melhor o que vem daqueles que estão
investidos em seu nome, de seus interesses, do que daqueles que lhe são
estranhos”. E qualquer erro poderá ser sanado pelo próprio Tribunal do Júri em
novo julgamento.
A justiça é direito da sociedade. Mais ainda nos
crimes de sangue. E, no Tribunal do
Júri, é exatamente o dono do poder, no exercício ostensivo da democracia e de
forma soberana, quem a produz, o que torna absurdo o absolvido ficar preso ou o
condenado sair livre e solto.
Qualquer coisa diferente disso é golpe
na noção mais básica de justiça.
Por tudo isso, admira mesmo que esta verdade ainda hoje
precise, a golpes de martelo, abrir caminho tanto na doutrina como na
jurisprudência para que possam ver e enxergar o óbvio. Uma pena!
Por César Danilo Ribeiro de Novais, Promotor de Justiça no Estado de Mato Grosso e Editor do blogue Promotor de Justiça.
Nenhum comentário:
Postar um comentário